sexta-feira, 8 de maio de 2009

Histórias da casa amarela


Alegrete





Quando eu nasci, os meus pais viviam, em Alegrete, uma vila perto de Portalegre, no sopé da Serra de S. Mamede, onde o meu pai era médico.
A minha mãe veio para a cidade quando eu estava para nascer e, assim, nasci na casa dos meus avós, a que mais tarde seria a casa amarela da minha infância.
Há muitas histórias dessa passagem pela vila de Alegrete, histórias que me foram contadas por várias pessoas. Pouco tempo lá devo ter vivido e não tenho recordações a não ser talvez o perfume das flores e a imagem de uma varanda com paredes muito brancas cobertas de trepadeiras com flores coloridas, talvez malvas, rosas, muita folhagem e muito sol. Mas estas imagens podem ter sido sugestão das fotografias que vi desse tempo.
A minha mãe chegou ali, acabada de casar, e trazia no seu enxoval camisas de dormir de seda, decotadas nas costas -que copiara dos vestidos dos filmes da época das stars de Hollywood- e contava-nos como tinha frio de noite, quando o Inverno chegava. Até que um dia se decidiu a pedir à avó que lhe mandasse camisas de flanela quentinhas. Muitas dessas camisas às florinhas serviram depois para fazer vestidos às meninas da sua rua quando iam à festa.
Havia pobreza naquela terra. O meu pai não podia levar dinheiro a quem o não tinha e ia recebendo uma galinha, uns ovos, umas alfaces, uns bolinhos “para as meninas e para a senhora”, mas isso não chegava para nos fazer viver sem a ajuda dos avós.
Médico da aldeia e dos arredores, devia calcorrear os campos, e a serra, subindo as ladeiras íngremes e escalavradas, às costas de um burro ou de um macho, acompanhado pelo familiar do doente que o viera chamar à vila, até às casinhotas brancas, às vezes simples casebres no meio dos penhascos. Contava-me que ia a ler e que foi em cima de um burro, abanando o corpo ao sabor do movimento do animal, que leu toda A Montanha Mágica.
O meu pai era uma pessoa doce e adivinho-o a dar uma palavrinha à doente, a pôr-lhe a mão na testa, a segurar o pulso débil para ver a febre e, com os olhos melancólicos e revoltados, perdidos na pobreza daquelas paredes, imagino-o a suspirar. Quando voltava era noite, as ruas estavam escuras, as portas fechadas e via, ao longe, através dos vidros, brilhar a luz do candeeiro ou da vela que a minha mãe sempre deixava. Dentro, havia calor, o cheiro dos candeeiros de petróleo e do fogão de lenha que ajudava a aquecer a casa, mais o lume da lareira na cozinha.
O meu pai teve de partir um dia, triste e desiludido, porque o dinheiro não chegava e não podia manter-nos se continuasse. Deixou a vila para sempre. Ficaram para trás muitos amigos e foi-lhe doloroso partir.
Contou-nos essa despedida, anos mais tarde, a tia Zezinha, irmã da avó, porque a família do marido, o tio Mouzinho, vivia em Alegrete.
Contou também como, durante os anos em que o meu pai foi médico, ninguém morreu na vila, tal a atenção e o cuidado com que o meu pai os tratou; dizia ela, a rir-se nas suas gargalhadas sonoras, que o próprio coveiro quase não tinha trabalho...
Quando o meu pai se foi embora, veio muita gente acompanhá-lo ao carro, fez-se um grande silêncio e só se ouviam os soluços. As mulheres choravam com os filhos ao colo, e os homens tiravam os chapéus quando ele passava e enxugavam os olhos vermelhos, estendendo-lhe a mão.
- Sim, sim, até os homens choravam!
Apesar de saber que a tia Zezinha gostava de exagerar o dramatismo das suas histórias, eu gostava muito de a ouvir e tinha vontade de chorar .
Foi assim que partimos de Alegrete e viemos morar em Portalegre, na casa amarela.





A casa amarela


Na minha infância, vivi numa casa amarela, numa rua inclinada. A casa era a mais alta, cheia de escadas, de cantos, de corredores, com divisões pequenas e estranhas.
Dormíamos no segundo andar, eu e as minha irmãs, e do nosso quarto via as árvores da serra, as nuvens e as andorinhas. Tudo parecia perto daquela janela.
Quando estávamos doentes, vínhamos para um dos quartos do primeiro andar, ao lado do dos meus pais -que era o quarto azul.
Ao pé desse quarto, havia a salinha verde e a sala grande onde jantávamos nos dias de festa ou quando os amigos vinham visitar-nos. As cores davam um encanto a essas divisões simples que nada mais tinham.
O quarto azul era o quarto onde tínhamos nascido, onde vi a minha irmã acabada de nascer igual a um bébé de porcelana. O meu tio tinha vindo acordar-nos nessa manhã, vestiu-nos e levou-nos a ver a menina.


E eu ria-me e dizia: “é uma boneca...”
Esse era o quarto dos pais, amplo, pintado de azul, com uma janela que dava para um grande quintal cheio de arvoredo que pertencia a um vizinho.
O outro quarto era um pequeno quarto interior que abria directamente para a sala verde, a sala do piano, que tinha uma janela sobre a tal rua inclinada. Havia uma porta para o corredor e, mesmo ao lado dessa porta, estavam duas estantes baixas, corridas ao longo da parede, cheias de livros que cheiravam a pó e a antigo e que para mim era o cheiro mais agradável deste mundo. Quando estava doente, bastava sair da cama, abrir a porta ao lado da mesinha de cabeceira, sair para o corredor e tinha todos os livros à minha espera. Até me recordo da maneira como segurava o livro e abria as páginas com uma faca afiada. Suspirava de prazer e sorria enquanto lia.
Um ano adoeci com nefrite e fui obrigada a estar muito tempo de cama, sem me poder levantar. O único divertimento permitido era ler, li dezenas de livros: Contos Húngaros, Contos Romenos, muitos livros do Stendhal, li A Montanha Mágica, Jean Christophe, O Fio da Navalha... Tantos outros que agora não recordo mas foram uma companhia inesquecível.
A sala verde tinha uma cor suave e duas poltronas pequenas forradas de um tecido esverdeado com flores pequeninas. Era ali que estava o piano da minha mãe, encostado à parede do lado esquerdo, com o seu metrónomo e uma cópia da Vitória de Samotrácia, cuja elegância me fascinava.

O dia passava-se na sala do segundo andar, ao lado da cozinha, que tinha um fogão de lenha com gavetas para a cinza e uma torneira de cobre brilhante. Havia uma mesa redonda pequena perto da chaminé onde a Florinda e a Rosalina comiam e, depois da cozinha arrumada, tarefa para a qual contribuíamos todas, as minhas irmãs e eu, limpando os talheres e pondo-os nas gavetas, íamos jogar às cartas. A Florinda adorava jogar à bisca e ao Burro, e costumava fazer batota.
Ler, estudar, comer e conversar era na mesa grande da sala, com cadeiras à volta, e uma braseira de Inverno. No ângulo junto da janela, o móvel do rádio, moderno, de contornos elegantes e arredondados; do outro lado, a cómoda antiga de gavetas cheias de roupas, de lenços de seda, chapéus e colares de contas brilhantes.

Era nessa mesa que o meu pai tomava o seu café, lia o jornal depois do almoço e eu ficava a ouvi-lo falar.
Ao canto, outra janela e as escadas íngremes que subiam para o sótão e iam até à varanda.
Foi delas que caiu a minha irmã e veio a rebolar lá de cima, com um pedaço de cordel agarrado na mão, o cordel que ela puxava e se partira. Quando chegou cá abaixo, cheia de sangue, só dizia: “Mamã, não chore, não foi nada...”

A minha mãe tremia, ajoelhada no chão a seu lado, sem forças para a levantar. Lembro-me de as ver, da janela, a minha irmã com a cabeça embrulhada numa toalha branca onde eu via pingos de sangue, agasalhadas nos casacos de Inverno, sob a chuvinha fina, a entrarem para o carro de aluguer que as levaria ao hospital onde o meu pai as esperava.

Quando voltou, trazia uma ligadura, chorava porque lhe tinham cortado o cabelo e tinha vergonha que a vissem. Queria que lhe fossem buscar um gorro de lã angorá vermelho com orelhas de gato que era duma nossa amiga
Depois, foi a minha outra irmã, a pequenina, que caiu das escadas que desciam para o primeiro andar, quando corria atrás de mim, mas dessa vez não aconteceu nada, senão o susto. Eu tinha fugido dela, tinha ido esconder-me no andar de baixo, na sala do piano, para ir ler deitada na carpete, no chão, como era costume, e lembro-me que fiquei cheia de remorsos por o ter feito.
Era o tempo em que éramos pequenas e a nossa vida corria tranquila como um ribeirinho e tudo parecia belo e bom e os temporais não tinham chegado dentro de casa.

Lá fora, o vento podia zunir, dobrar as árvores, abanar as telhas dos telhados e a chuva podia cair...


Renoir, meninas ao piano

O piano e a chuva




E a chuva caía, devagarinho. Outras vezes arrastava tudo num vendaval, fazendo voltear as folhas caídas e as areias, em enxurrada.
A minha rua tinha um grande encanto quando chovia.
Detrás das janelas, via as cordas de chuva escorrer em ziguezagues pelas vidraças, formando bolinhas transparentes, e aquele barulho suave acompanhava-me. Abria um pouco da janela e debruçava-me, para espreitar as torrentes de água ainda límpida que desciam a correr em direcção ao fundo, onde confluíam, num refluxo colorido, enlameado, com as águas que vinham da Corredoura.
Nesses dias, às vezes, a minha mãe deixava-me ficar em casa e não ia à escola. Era um prazer ouvir a chuva bater nos vidros, ora forte, ora devagarinho e estar ao quentinho, a ler ou a pintar.

Quando chegava a Primavera e a chuva passava, a minha mãe gostava de tocar piano. A música encantava-me. Escondida detrás do cortinado, de olhos fechados com força, mãos apertadas a segurar os joelhos, os ombros tensos, ficava a ouvir a minha mãe. Ela tocava muito Chopin e Lizt. De perfil, inclinada, com os seus cabelos muito negros, ondulados, a minha mãe era bela. Com um vestido ligeiro, que me parecia ter muitas cores suaves, ela erguia um pouco os ombros, os dedos pequeninos esticados sobre as teclas pretas e brancas, acompanhando a melodia com a voz. Às vezes, repetindo uma passagem mais difícil, inclinava-se para a frente. O papel da música tremia, leve, na corrente de ar primaveril, e a minha mãe ia virando as folhas. Eu, sentada no degrau de madeira, encostado à janela, sentia o fresco nos cabelos e sentia-me feliz. Ninguém sabia que eu estava ali.
(Ouvir Beethoven e a bela sonata Clair de lune):
Beethoven, Sonata Clair de Lune
http://www.youtube.com/watch?v=zKl72bR0D4I

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