domingo, 27 de setembro de 2009

Histórias: 4 mulheres e um cão... 1ª: mulher Hassnâa, Marrocos

Uma canção de Oum Kalthoum
http://www.youtube.com/watch?v=FFZYOVskiSQ




Vinha pelo corredor de manhã, a cantarolar, e adivinhava o movimento ondulante do seu corpo, que o ar de dança imprimia ao corpo, figurinha de tânagra, delicada nos gestos, de tornozelos grossos e mãos estragadas pelo trabalho.
Metia a cabeça pela porta e perguntava:
-Saïdati? Madame...Queres que te traga já o pequeno almoço? Café com leite?...
Era musical a maneira de falar.
Entrava, suave, e dava-me três beijos na face.
-Bom dia, saïdati! Dormiste bem?
A alegria da manhã entrava pelo quarto com o sorriso dela. Lembro-a assim, hoje, depois de tudo ter acabado.
Chamava-se Hassnaâ que quer dizer “bela” e cantarolava, a brincar, com uma músiac inventada por ela:
“Hassnaâ-la-belle...
Hassnaâ-la-moche...”
Acabando por concluir, sempre:
-A Hassnaâ-la-moche, a feia, sou eu...

A minha casa de Marrocos era bela e estranha na sua desmesura, e cheia de armadilhas, achava eu. Degraus altos para o jardim, desníveis no sobrado, pisos inclinados, uma escada de caracol, vidraças escondidas.
Durante muito tempo tropecei, caí, bati com a cabeça nos vidros. Como uma borboleta cega.
Senti-me prisioneira do jardim fantástico, com espaços arejados e luminosos, cheios de beleza e de cor, mas rodeado de grades, onde me sentia enterrar todos os dias.
Pensei que era uma casa assombrada. Por mortos que não tinham podido ser ali felizes?
Ou seria a Hassnaâ o seu feitiço?
No fim, todos disseram que era perversa, louca, que aterrorizava as pessoas da casa. Não seria ela, pelo contrário, o contraveneno desse mal, na sua alegria constante - enquanto a alegria durou?

Ela cantava e ria: “Hassnaâ-la-belle? Hassnaâ-la-moche?...”
-Eu sou o patinho feio, não é, saïdati! A bela é a minha irmã Hassaniah! Ela é boa. Reza ao meu Deus, sempre, e Allah gosta dela...
-“E de ti?”
-“Se calhar não gosta...”
Mais tarde, quando tudo na vida dela se desmoronava, lembro-me que me disse:
-Se Allah quer, eu sofro e aceito...
Hassaniah era a irmã gémea, o seu oposto, calada, séria, religiosa, que vivia numa aldeia fora de Rabat. Um dia, via-a dizer a oração da tarde. Desdobrou diante de nós uma serapilheira e ajoelhou-se, virada para Meca, inclinada, de olhos fechados, apoiando-se nos dedos flectidos dos pés, descalços.
Hassnâa apontava para os dedos dobrados e dizia, irónica:
-“Allah, o meu Deus ...
Ela dizia sempre: “o meu Deus”. Parava, sorria e continuava:
-Ele gosta muito dos dedinhos dos pés assim dobrados...
Com uma forma de infantilidade no olhar, entre o sério e o riso, como se aquele espectáculo fosse para ela também um divertimento, continuava:
-Saïdati, está com atenção agora. Ela vai pedir coisas para nós, que eu disse-lhe! Estás a ver? Mexe os dedos das mãos...
E de facto Hassaniah, de olhos fechados, a boca cerrada, concentrando-se na sua interioridade, ia abrindo um a um os dedos da mão esquerda e depois os da direita, como se contasse os pedidos que fazia.
-“Hassaniah-la-belle...”, dizia eu, baixinho, a brincar.
-E “Hassnaâ-a-feia”, continuava ela em voz alta.
“Achas que eu sou a feia, a má, não achas?...”
-Não! És bonita e és boa!
Gostava de cozinhar, de arrumar a casa, e tudo o que saía das mãos dela era perfeito. Dizia sempre: “ eu sei...”
-Saïdati, faço-te um bolo?”
-Não.
-Queres tajine de galinha?”
-Sim...
-Saïdati, queres ouvir esta música?
E lá trazia uma velha cassete que ouvíamos no aparelho.
-É uma música antiga, dos velhos tempos da Oum Kalthoum (*).

Sentia o fascínio da música, do espectáculo, das telenovelas egípcias, da agitação constante. Cantava ao mesmo tempo que ouvia a música, e ia dançando. Queria convencer-me a gostar de tudo o que ela amava.
-Um dia gostava de ir cantar à televisão, achas bem? Há concursos...
-E por que não hás-de ir? Cantas muito bem!
-De verdade?
Calva-se de repente, ficava triste:
-Não posso..., o meu irmão Abdullah não deixa... O Samir não se importava, mas ele não manda nada, é o mais novo... Também gostava de ser actriz...
E ficava a pensar.
A casa enfeitiçada acabou por me apanhar nas suas malhas. Caí da escada de caracol e fiquei imobilizada, de cama, mais de um mês.
Era a Hassnaâ que vinha fazer-me companhia, ajudar-me a levantar. Ajoelhava-se no chão ao lado da cama até eu a mandar sentar.
-Posso falar, ou queres descansar?
-Podes falar...
-Quando te cansares, eu calo-me...
E contava, contava, de mãos cruzadas sobre o avental. Pequena Sherazade de todos os dias, ia contando histórias sem fim nem começo. Da casa pobre onde toda a família vivia porque o pai não tinha sabido ganhar a herança do tio-avô.
-O Miloud não tem boa cabeça...
-Quem é o Miloud?
-É o meu pai...Tem uma cabeça “srera”...
“Quer dizer "pequena”, explicava-me... Srera, kbira...
-Não sabe pensar, nem tratar de negócios. Trabalhou em França, voltou e sempre sem dinheiro...
-Que culpa teve ele, coitado?
-Teve! Teve... O meu tio ficou com tudo, porque é esperto! Tem uma linda casa em Taza, na montanha.
Olhava lá para fora, pensativa, como se imaginasse no meio das árvores do jardim, entreos ibiscos vermelhos, côr de chá, e as buganvílias, a casa de Taza que o pai não soubera ter...
- E nós? Nada...Temos todos que trabalhar lá em casa! O Miloud não trabalha, claro, já está velho e cansado...
Contava do irmão que ia casar com uma mulher gorda de que ela não gostava.
-Não trabalha, está sempre a comer... É feia e gorda!
Falava da irmã, Samirah, alta e bela, que tivera uma menina e se recusara a tratar dela porque estava doente.
-Eu é que fui mãe dela. Ainda hoje chora quando me vê, tem saudades minhas...
Contava da avó que se fechava na sua divisão minúscula, com uma manta pendurada do tecto a fazer de porta, e que ficava sentada no chão a comer de três tachos diferentes.
-Três tajines! E sempre com fome! Só sabe comer...e dizer mal dos outros!
E acrescentava, irritada:
-E faz maldades!
-Que mal é que ela faz?
-Não gosta da minha mãe, fá-la chorar. É um diabrete! Lá em casa, vira uns contra os outros... Ouve as conversas às escondidas e vai contar tudo ao meu pai! Arranja sarilhos e depois fica-se a rir.
Perguntava:
-É má, como eu, não é saïdati?
Não tinha estudado e, às vezes, lamentava-se. Dizia, com ar sonhador:
-Podia estar agora a aprender como a Hassaniah...
A Hassaniah estudava na sua mesinha de trabalho dentro dum armário porque não havia mais espaço na pequena casa.
-Parei muito cedo, era preguiçosa. Se soubesse francês, se calhar podias levar-me um dia para a Europa. Só estudei bem a língua árabe... Queres ver como eu escrevo?

E tinha, de facto, uma linda caligrafia, desenhada, de arabescos perfeitos.

Não sei quando me apercebi da mudança nela. O Ramadão tinha calhado no mês de Novembro. O jejum, a alteração dos hábitos, trouxera o desequilíbrio? Acordava de madrugada para comer, andava sonolenta o dia inteiro, com as pupilas dilatadas. Sentia-se fraca, com tonturas, tinha frio. Às vezes, embrulhava-se num velho cortinado azul, outras, ia sentar-se ao sol, horas perdidas.

-Ouvi uma voz chamar-me..., dizia, quando entrava em casa. Foste tu?
-Não...
-Os pássaros falaram comigo...

Uma noite, por altura do Natal, ficámos as duas a ver a televisão. Imagens belas, músicas festivas, crianças que sorriam e cantavam cânticos doces. Ela olhava de olhos muito abertos.
De repente, como se saísse de um sonho, disse-me:
-Saïdati, quero dizer-te uma coisa...
-O quê?
-Vou devolver umas prendas que me deram...
-Prendas? Quem te deu prendas? Não conheces aqui ninguém...
-Deu-mas um homem que trabalha ali em frente, nas obras.
-E deu-tas, porquê?!, estranhei.
-Não fiz nada de mal! Dei-lhe uma tigela de harira, no Ramadão, uma ou duas vezes, quando dava ao Brahim... E ele quis agradecer-me...
O Brahim era o nosso guarda berbere, a quem ela dava ordens, gritava e que dominava.
-E depois?
-Nada...Não fiz nada!
-E então por que é que lhas devolves agora, se não fizeste mal?...
-Porque ele agora quer fazer amor comigo e eu não quero.
Olhei para ela, pasmada. Parecia-me uma desconhecida, de repente.
-Não és tu que devolves nada. Vais dizer ao Brahim para lhas dar.
-Sim, saïdati...

Dias depois, esse homem saltou o muro do jardim, entrou dentro de casa e quis fazer-lhe mal. Era ao fim da tarde e pareceu-me ouvir gritos abafados lá em baixo. Desci a correr as malditas escadas de caracol, onde tinha caído, e vi uma sombra fugir. Ela estava imóvel de olhos espantados e sem medo.
-Fez-te mal?
-Não...
-Mas queria?
-Sim.
E aí começou tudo. A polícia, os interrogatórios, as acusações. Toda a lama caíu sobre ela. Acusaram-na, sobretudo o guarda berbere. Que ia ter com aquele homem de noite, que bebia álcool durante o Ramadão, que era depravada, cheia de doenças.
-Bebe, fuma hashish...
-Hashish?
-Fuma, sim, dizem que fuma...
Ela empalidecia e defendia-se. Agredia com as palavras, excitada, frenética.
Diante dos inspectores que vieram no dia seguinte, sentou-se, calma, e apresentou uma queixa contra o agressor.
-Não sou eu a culpada! Foi ele...
E começou a contar. Eu olhava para ela, querendo acreditar no que dizia.
-Acredito em ti, Hassnaâ...
Mas sentia-me insegura.
-Ela não é normal, dizia um dos polícias. Uma mulher árabe não fala assim! O que é que se passa dentro daquela cabeça?

Lembrava-me de a ver brincar com as formigas, agachada detrás da porta da cozinha.
-"Hassnaâ! O que estás a fazer? "
-"Estou a rezar a Sidi Suleiman, para ele afastar as formigas lá para a rua. Ele sabe... "
Imaginava-a a chegar do jardim quando entrava pela porta envidraçada e me dizia:
-"Os pássaros estavam a chamar por mim, fui falar com eles..."
E os grilos que estavam aprisionados nos canos da banheira da casa de banho -a quem ia de noite dar alface, quando eles vinham cá fora espreitar?
-Não, não é normal..., pensava.
Via-a sair nos fins de semana, com as curtas mini-saias da outra irmã que vivia na cidade. Voltava com os cabelos desfrisados e um corte moderno, contente, com os lábios pintados. Queria ser como as outras raparigas que via na televisão.
-Gostas, saïdati? Da próxima vez vou pintar os cabelos com henné vermelho...

Sentada na cadeira da cozinha, dias depois de toda a história ter começado, dizia-me:
-Se o Miloud soubesse, o meu pai...
-Se os pais soubessem das filhas...
-Se ele soubesse que o nome dele vai estar em cima duma secretária, na Polícia...
-É culpa tua?
Ignorou a pergunta.
-Se o meu Deus, se Allah quer assim...
E, virando-se para mim, brusca:
-Se não gostavas dos lábios pintados, porque não me disseste, saïdati?
Foi entristecendo, pouco a pouco, desleixou-se na maneira de vestir, arrastava os pés nas chinelas, desinteressada.
Onde estavam as personagens que vivera? A heroína das telenovelas românticas? A criadinha de farda verde e touca na cabeça que se ria, a servir à mesa? A “vamp” de saia travada e botas altas que saía ao fim de semana para ir a Salé? A governanta de chaves na cintura? A princesa encantada no jardim dos pássaros?

Uma noite, em que recebia convidados, deixou cair a travessa do jantar na cozinha. Estava completamente bêbeda.
Voltavam as dúvidas. Afinal, ela bebia? E o resto? Era tudo verdade?
Nessa noite tirou os grilos da banheira e veio com eles na palma da mão, cambaleando, lúcida:
-Mato-os?
-Não.
-Vou deitá-los para o jardim.
Com um sorriso frio, atravessou o quarto e, através das grades, deitou-os lá para fora e fechou a janela sem olhar. Como se me quisesse magoar.
Disseram-me outra vez que ela não era boa, que não era séria, que da janela da cozinha continuava a acenar ao homem que quisera violá-la, que lhe falava ao telefone, que ria com ele. E, também, que era prepotente, que fazia chantagem com os outros empregados. Ninguém podia falar comigo sem ela autorizar. Sabia que eu gostava dela e ameaçava-os: se contassem o que se passava lá em casa, bastaria uma palavra dela para eu os despedir!
-“Quando eu quiser!”, dizia.
Qual era a verdade?
Angustiava-me, sem saber o que pensar. Eu gostava muito da Hassnaâ.

Uma manhã, disse-me:
-Já não gostas de mim, saïdati... Não és a mesma. Desconfias...Vou-me embora...
Pareceu-me cansada. Não fiz um gesto para a reter. Acompanhei-a de carro até ao centro da cidade, perto da Medina, onde morava a irmã. Despediu-se de mim com os três beijos a que nos tínhamos habituado.
-Saïdati, nunca te esquecerei...
Sabia também que me lembraria sempre dela. Não me virei para trás, não era capaz de a ver ir-se embora, sozinha.
***************************

(*) "No Magreb multi-étnico dizer Oum kalthoum é nomear a enorme figura da música árabe dos anos 50, ... Milhões e milhões desde o Iraque até Marrocos vieram assistir ao seu funeral e foram-lhe concedidos os mais altos honores de estado."

Sem comentários:

Enviar um comentário