segunda-feira, 31 de maio de 2010

"Eram campos, campos, campos", dizia o Poeta, mas dizia mais coisas...

Manuel da Fonseca viveu entre as searas e o mar...





Mais uns poemas de Manuel da Fonseca, sobre o seu (e meu) amado Alentejo...e, o que pode parecer mais estranho, sobre o mar...



Estranho afinal não é...
Manuel da Fonseca é de Santiago do Cacém, da beira-mar alentejana, da linda costa que sobe do Algarve, por ali acima, até Lisboa! Santiago, Zambujeira do Mar, Porto Covo, S. Torpes, Sines...

Aqui deixo alguns (lindos, verdadeiros na sua "dureza", puros) poemas...


O ALENTEJO


CANÇÃO

Num ano de grande fome,
minha família acabou-se.

Eu tinha uma boa enxada
donde tirava o sustento,
ia-me de monte em monte
chegava à porta e dizia:
- lavrador,
eu cavo-lhe a sua herdade!
E no meio das courelas, a minha enxada luzia.
Viesse o sol que viesse
e a chuva que caísse
e o vento, que vem do norte
e corta como uma foice,
que assobiasse e cortasse:
- a minha enxada luzia!

E a minha filha crescia,
estava uma moça vistosa.
Tanto que os homens saíam
para a porta das tabernas
dizendo ao vê-la passar:
- lá vai a Rosa Charneca.
E minha mulher cantava
estendendo a roupa, a corar,
sobre esteveiras, ao sol.

Quando veio a grande fome
tudo isto se acabou.

Minha mulher foi prà monda
lá para o Alto Alentejo.
E a minha filha abalou
com uma mulher que ri
e anda de feira em feira
armando aquela barraca
onde se bebe e se ama.

E numa manhã de Inverno,
não pude mais e parti
- pelas estradas do acaso
com a manta de maltês!...

in “Poemas Completos”, O vagabundo e outros motivos alentejanos, pg 41)

SEARA

Horizonte
todo de roda
caiado de sol.
Ao meio
do cerro gretado
esguia cabeça de cobra
olha assobios de lume
sobre espigas amarelas...

(...Campaniços degredados
na vastidão das searas
sonham bilhas de água fria!...)

( idem, pg.97
)

uma vila alentejana

ALDEIA

Nove casas,
duas ruas,
ao meio das ruas
um largo,
ao meio do largo
um poço de água fria.

Tudo isto tão parado
e o céu tão baixo
que quando alguém grita para o longe
um nome familiar
se assustam os pombos bravos
e acordam ecos no descampado.
(Planície, p. 94)

POENTE

No postigo do monte
inquieto rosto acode
espreitando para longe
o descampado aberto.

(Quem vem lá na distância,
que nem a seara mexe
nem o pó se levanta
dos caminhos sem vento?)

(idem, p.96)

E O MAR...
o mar alentejano, em Porto Covo

CANÇÃO DE HANS, O MARINHEIRO
in "Obras Completas -Planície, pg.31
Costa alentejana...

Se tu soubesses
que em todos os portos do mundo
há uma mão desconhecida
a acenar –adeus, adeus- quando se parte prò mar;
se tu soubesses que o mar não tem fronteiras nem distâncias
é sempre o mar;
se tu soubesses
a noite nas águas
onde os barcos são berços
e os marinheiros meninos a sonhar;
se tu soubesses
o desamor à vida quando o vento grita temporais
e a morte vem abraçar os homens na espuma das vagas;
se tu soubesses
que em todos os portos do mundo
há um sorriso
para quem chega do mar;

se tu soubesses vinhas comigo prò mar.
vinhas comigo prò mar
embora s nuvens do céu
e os ventos que vêm do este e do oeste, do sul e do norte
digam ao mundo que vai haver o temporal maior que todos!

Mar, na costa alentejana, perto de Porto Covo

sábado, 29 de maio de 2010

Eram campos, campos, campos... Umas férias no Alentejo, com os meus tios...

Para os meus tios, Nina e Fausto, personagens inesquecíveis da minha infância

Eram campos, campos, campos, como diz Manuel da Fonseca no seu belo poema "Estradas":

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
Abertos num sono inquieto.
Eram cabeços redondos de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
Cheias de azul e silêncio.”
(...)

Sim, eram campos, campos, campos...
Uma vez passei umas férias, com os meus tios, no Monte da Bodaneira, onde, nesses anos, eles viveram.
Nunca me esqueci dessas férias.

Tinha a ideia de ter ido para terras longínquas, de me distanciar da minha casa, e de Portalegre.
No meio do Alentejo, “uma aventura!”, pensava eu.
Recordo pouco ou nada da chegada à casa, mas suponho que seria ao cair da tarde, por causa do calor intenso...

Era Verão, e o Verão é duro por aquelas paragens.

A minha tia vinha do Norte, de uma família abastada, o meu tio trabalhava como desenhador técnico camarário e percorria nessa altura o Alentejo, fazendo medições, aferindo cálculos, acompanhado pelos seus ajudantes -que não sei por quê ele chamava “miras”-, desenhando mapas cartográficos que eu achava lindos e poéticos
!

Tinham-se conhecido quando ele era estudante, no Porto.
Contava-me ela que o meu tio andou muito tempo à roda, a espreitá-la, seguindo-a, sem ousar aproximar-se: ele mero estudante a acabar os estudos, ela menina rica e muito cortejada.
Era muito bonita, sorridente, cheia de amigos, mas acabou por reparar nele, gostou do seu ar directo, da sua timidez e talvez também dos seus olhos garços.
Assisti ao casamento deles e, talvez por isso, a nossa ligação foi muito forte.
Mas lembro-me bem da alegria de nós três e do reboliço que havia em casa quando se anunciava a "buzina" de um certo carro...
A viagem, no pequeno Ford Prefect verde-clarinho (2) do meu tio, pareceu-me uma longa deslocação, uma ida quase sem destino e sem fim!
O meu pai nunca quisera um automóvel e nós quase nunca viajávamos... Para mim era uma novidade!
Descobri, anos mais tarde, que o Monte da Bodaneira ficava, afinal, a escassos quilómetros da estação ferroviária de Portalegre, num desvio muito perto da zona onde as cegonhas costumam ainda hoje construir os ninhos, nas altas chaminés das velhas casas baixas, ou nos ramos desgrenhados e sem folhas dos eucaliptos junto da estrada.
Era por esse caminho pedregoso, ia-se andando, andando, ao lado dos tais campos e campos que corriam ao lado do carro.

Lembro o sol forte a bater todo o dia, incandescente, nas paredes caiadas da casa. Tudo “à torrina do sol”, como costumava dizer a Florinda dessas tardes de Verão.
Era o sol, os campos a perder de vista, as fileiras de árvores, erectas, junto de algum curso de água, as azinheiras no alto dos cabeços redondos, mais a sua copa ampla, sombra segura, onde os trabalhadores comiam e descansavam, com o tarro da comida, de cortiça, ao lado.
Isso lembro bem.

E a casinha branca e o seu terreiro empedrado em frente, onde aprendi a andar de bicicleta na bicicleta grande da minha tia. O terreiro era uma espécie de largo que tinha em redor outras dependências ligadas ao monte.
Às vezes o meu tio levava-me atrás, na moto, a célebre e mítica Jawa, de que ainda hoje fala.

Íamos ver os sítios onde trabalhava, verificar os trabalhos e eu adorava acompanhá-lo.
De cabelo ao vento o que me obrigava a levar os olhos fechados porque ardiam com a areia ou -quem sabe?- pela vertigem que sentia naquela corrida pelos campos, a uma velocidade louca numa moto de corridas, pensava eu, delirante com a aventura.

A paisagem alentejana envolvia-me, as searas douradas, onde a época da monda acabara há pouco, os campos a perder de vista, as estevas, as urzes. Os cheiros a feno e a trevos, todo aquele verde e amarelo entravam-me pelos olhos, pelo nariz, pelos poros, as cores entonteciam-me.
As florinhas pobres que nasciam à beira dos carreiros, simples nas sua cores azuis e roxas, as papoilas rubras dos trigais encantavam-me...

Sim, eram campos campos campos... Tal como no poema.

Vêm-me hoje à memória páginas de Noel Teles, Brito Camacho, Manuel Ribeiro, e de Manuel da Fonseca, é claro, que imortalizaram o meu Alentejo.

E continuo a ver-me à roda, à roda na bicicleta, nos primeiros dias arrastando o pé pelo chão, depois, orgulhosa, de cabeça erguida e costas bem direitas, com os pés nos pedais, com a velocidade que podia, para impressionar os meus primos.
De vez em quando raspava o braço na parede, esfolava um cotovelo, ou ia parar quase em cima da esquina da casa, ou dos poiais, travando a fundo no último momento.

Às vezes, afastava-me um pouco pela azinhaga, nunca muito longe, a minha tia não deixava.

Os meus primos brincavam por perto, ela ainda muito pequenina, ele um rapazinho de 7 ou 8 anos.
Quantas vezes, esquecendo a minha condição de adolescente de onze ou doze anos, "já crescida", ia brincar com o meu primo! Trepávamos às árvores, cortávamos ramos para fazer setas, corríamos...
Ele ainda hoje corre por aí, homem das Arábias, sempre aventuroso, ora pelas Índias, ora pelos Saharas, Marraqueche, sabe-se lá por onde, na moto, imitando o pai...
Gostávamos de brincar os dois aos índios e aos cowboys, histórias inventadas nas quais eu era sempre o índio, com arcos e flechas armas construídas por nós com a navalha dele que nunca largava, e ele o cowboy com o seu chapéu novo, as pistolas prateadas e um lencinho ao pescoço, última oferta de anos.

Oh! Sim, tenho saudades...
Lembro a minha tia, linda mulher que hoje, na recordação, imagino como certas figuras de mulher do Far West daqueles maravilhosos filmes do Jonh Ford (e, claro, com o John Wayne! O meu tio que me desculpe...).

Acompanhou-o por todo o Baixo Alentejo, o Alentejo profundo – o Wild Alentejo, rude e cheio de humanidade, com tantas dificuldades, o Far West desses tempos!

Sem conforto, sem apoios, por vilas e aldeias, ou simples lugarejos, de Odeceixe a Mira, de Odemira a Aljustrel, até ao começo do Algarve, quantas vezes indo ter com ele nas velhas camionetas de carreira, sempre com o mesmo sorriso com que chegava a Portalegre, a visitar-nos!
Bela, cheia de vida, corajosa, decidida!

Ainda hoje penso que nada lhe mete medo e enfrenta a vida com esse mesmo riso, ao pé do meu tio, ele e a sua calma olímpica, de alentejano de raiz...

Vejo-a ainda, junto da janela dessa casa branca, ao lado dos vasos de flores que ela mesma plantara, queimada pelo sol, nos seus vestidos singelos e coloridos, a rir.
A rir, como toda a vida me lembro de a ver e oiço as suas gargalhadas tão frescas como as da menina que vi noiva e achei tão bonita...

Eu voltei dessas férias diferente, mais segura de mim, bronzeada, orgulhosa e independente pelas idas na bicicleta e os passeios na moto. Guardando a memória cheia de todos aqueles cheiros, dos campos, do sol e do pó da planície alentejana.

(1) Manuel da Fonseca, Estradas, in “Poemas Completos”, p. 98
(2) fotografia da planície alentejana, de José Luís Mendes :

http://olhares.aeiou.pt/planicie_alentejana_foto243548.html

(3) O Ford Prefect foi introduzido -e construído- pela primeira vez em Inglaterra, em 1938, pela Ford de Dagenham, Essex.

O original Ford Prefect era uma modificação do anterior 7Y, o primeiro carro Ford, criado fora de Detroit, no Michigan.
Foi desenhado especificamente para o mercado inglês.

(4) A moto JAWA foi criada na Checoslováquia, nos anos 50.
Esta moto foi preparada para Jaromir Cizek que, em 1955, já tinha vencido duas corridas de moto-cross na Checoslováquia.

Em 1958, Cizek foi Campeão Europeu, com a sua Jawa!

Curiosidade -para os interessados: há uma moto Jawa, à venda, em Portalegre!!!
Quem sabe se o meu tio não se decide a comprá-la???


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Os Amigos... Lembrando O'Neill, tão injustamente esquecido, e o seu poema "Amigo"...

Este quadro de Zinaida Serebriakova, pintora russa que muito admiro, poderia ser uma boa ilustração para a "amizade"...

1ª edição do livro "No Reino da Dinamarca"

Recebi uma carta da Delfina...
A Delfina foi uma das minhas últimas alunas na Escola de Sintra.
Trabalhava na Mediateca da Escola (ela e a Ana) e ao mesmo tempo tirava o 12º ano.
Uma aluna exemplar (outras o eram...), atenta, entusiasmada, radiosa quando lhe nasceu o primeiro neto. Benfiquista, desculpem lá os outros que o não são... É a verdade.
Lembro-me quando me mostrou a primeira fotografia do bébé, enfeitado com um grande cachecol do Benfica ao pescoço...
Tenho saudades dessas noites e das nossas aulas.
De vocês todas!
Não me canso de repetir que muito aprendi sobre a vida, a coragem, a humanidade, nessas aulas da noite.
Admirava a coragem de virem, depois de um dia de trabalho, com o entusiasmo misturado de cansaço, a vontade firme (não de todos, é claro) de "abrir a mente", aprender, a curiosidade dos assuntos que estudávamos. Dispostas a enfrentar essa luta que era dura...
E riam.
"Gosto tanto de poesia!"
" Não conhecia bem o Fernando Pessoa..."
"Ah! Eu já conhecia um pouco..."
Fernando Pessoa foi, de facto, uma dessas "alavancas" para o saber...

Arrancámos com ele, no início do 12º ano de Português.
Ao princípio "não-amado" por algumas, pelo seu pessimismo.
"É absurdo!"
"Não se pode ser assim, tira a vontade de viver...!"
Mas Pessoa é vário, Pessoa é grande e tem muito mais que o pessimismo para nos dar.

No final do período, havia já outra ideia, outra compreensão do poeta.

E de repente revejo-as a "representar" Sttau Monteiro e "Felizmente há Luar"!
Modificavam-se. Todas queriam o seu papel na peça e repetíamos a leitura as vezes necessárias para poderem "actuar".
Interpretavam com seriedade, entusiasmo, sem brincar.
Mas havia inevitavelmente uma certa tensão nesse trabalho e, de vez em quando, desatávamos todas a rir, bastava um engano de alguma...
Vejo lá atrás os olhos da Delfina (uma alentejana em Sintra, como ela gostava de se definir...), da Ana Maria, da Jesus (que será feito da Jesus e dos seus problemas?);
da Sandra (que escrevia muito bem, gostava tanto de ler e fez um belíssimo comentário sobre um poema de Fernando Pessoa);
da Eugénia que escreve poemas sentidos e pequenos contos -com muita sensibilidade- falando da sua aldeia de Góis, da infância de "guardadora de rebanhos", como no poema de Alberto Caeiro que tão bem soube compreender: dizia-me ela: "Ó, stôra, era mesmo assim!"
"Sou guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.";
da Paula que me contava as histórias das suas férias, em roulotte, com o marido e os filhos, da descoberta fantástica da natureza aberta e pura, o mar em frente, sem crivos nem poluição, a simplicidade de viver em liberdade durante uns tempos;
da Carla e das suas meninas que um dia a transformaram em sereia! Um picknick, ao pé da piscina, a mais velhinha desequilibra-se e cai, a Carla mergulha vestida, "salva" a filha e, enquanto a enxuga, a mais nova deita-se de mergulho... Lá vai a Carla! Salva a segunda filha, mas já não tem forças para mais nada: vai deitar-se no primeiro sofá e adormece!;
da Isabel Francisco, alentejana como eu, que aos poucos me foi contando a sua pena de não ter estudado, quando era nova. A morte súbita do pai, as dificuldades da família -tudo o que se "meteu ao meio/o que devia de vir, veio", como diz Régio- e ela teve de ir trabalhar, ainda menina;
da Sílvia que tudo ouvia mas tanta dificuldade tinha, na síntese, ao escrever, a Sílvia e a sua dificuldade de viver, depois da morte do irmão, a Sílvia e os seus olhos perscrutadores que pareciam assustados;
da Ana sempre a pensar alto, tão pronta a protestar como a admirar e que se esforçava verdadeiramente a estudar;
das Filipas -a Ana e a Carola-, boas como o pão fresco as duas, bom coração à flor da pele...
Ah! Faltava falar da Manela! A Manela cujos pais tinham sido emigrantes na Suíça, que tinha saudades desses tempos. E as suas filhas já grandes que estudavam, de dia, ao mesmo tempo que ela.

E sorrio ao lembrar o telemóvel dela a tocar, um minuto antes do fim da aula, que acabava à meia noite menos um quarto... E do seu olhar ao princípio assustado, depois já confiante:
"É o meu marido que se preocupa..."

O engraçado é que os nossos telemóveis tinham o mesmo som de chamada e muitas vezes era o mas é o meu marido, preocupado...
Enfim, tenho saudades delas!

Escreve-me a Delfina:

"Querida amiga!
Começo por pedir desculpa por demorar a responder à mensagem, não por me esquecer, mas por andar bastante ocupada! No trabalho, como deve calcular , a mediateca está sempre cheia de alunos e nesta altura -com o final do período próximo, ainda mais alunos procuram o espaço para realização de trabalhos de final de ano ou aquele trabalho que irá ser a salvação de uma nota menos boa.

A Delfina e a Ana, na Mediateca

Estou também a frequentar uma acção de formação de técnicas de informacão e comunicação, o que me ocupa mais algum tempo!
Deixo-lhe um poema de um poeta de que gosto muito...
(...)
Uma sugestão para o blog!
Delfina"
As andorinhas não têm restaurante...

Aceitei a tua sugestão -mais do que justa- de apresentar um poeta que às vezes me parece que está esquecido.
E que fala aqui tão bem da Amizade...
E de outras coisas.

Amigo

Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra amigo!
Amigo é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
Amigo (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
Amigo é o contrário de inimigo!
Amigo é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado.
É a verdade partilhada, praticada.
Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
Amigo vai ser, é já uma grande festa!

Alexandre O’Neill (in No Reino da Dinamarca)

















Lembro um título de O' Neill: As Andorinhas não têm Restaurante
Em "As Andorinhas não têm Restaurante" estão reunidas algumas das crónicas semanais que O'Neill publicou no "Diário de Lisboa" e mais tarde foram reunidas num livro breve. "É a sua visão crítica e simpática da vida de Lisboa, com o conhecimento próprio, vivo e sugestivo, do ambiente boémio que se vivia; uma caricatura algo cúmplice do marialvismo dominante, um sentimentalismo que se defende pela ironia e pela ternura."

Cito do site onde vem apresentado o Livro Audio abaixo indicado, livro "falado", com a voz do actor e encenador, Jorge Silva Mello. Podem ouvir um pouquinho...

http://mhij.pt/audiolivro/as-andorinhas-nao-tem-restaurante/


Alguns títulos, de Alexandre O'Neill, de obras recentemente reeditadas:

"A Ampola Miraculosa"

Colecção: Obras de Alexandre O'Neill

Assírio & Alvim - 2002

(Edição Fac-similada)




"Já Cá Não Está Quem Falou"

Colecção: Obras de Alexandre O'Neill

Assírio & Alvim , Ano 2008





"Uma Coisa em Forma de Assim"

Editora: Assírio & Alvim

Colecção: Obras de Alexandre O'Neill

Ano: 2004



"Anos 70 - Poemas Dispersos"

Editora: Assírio & Alvim

Colecção: Obras de Alexandre O'Neill

Ano: 2009 2ª Edição


Nota: Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924 na cidade de Lisboa. Morre em 1986, vítima de um acidente cardíaco.

terça-feira, 25 de maio de 2010

A minha África ...

"Eu tive uma casa em África..."
Assim começava "Out of Africa" ("I had a farm in Africa", escrevia ela) da escritora Karen Blixen (Isaac Dinesen, nome com que escreve esse livro) que muito aprecio.E de outra maravilha, o livro de contos "Sombras no Capim".
Também eu tive uma casa em África!

a minha casa em África

Nela, conheci o pôr do sol, a penumbra súbita antes do crepúsculo da noite chegar, as chuvadas que irrompiam na tarde, os relâmpagos e os trovões súbitos depois de um dia de sol...
As flores que nasciam da noite para o dia...

Conheci as gentes, os mercados, o mercado Central e o do Ponto (em cuja noite da inauguração andei a dançar a ússu, o mercado do Pantufo mais a loja "Mundo já vê", o restaurante "Benfica" na cidade capital e também o "Esconderijo do Ganda", amei o cheiro da terra molhada, das flores e dos frutos.
mercado em S. Tomé

"O avião começara a baixar sobre a ilha de S. Tomé. Sentada no meu lugar, ao lado da janela, com as mãos fazendo concha sobre os olhos, procurava ver a noite. Apenas a escuridão em volta. E, de repente, as luzinhas brilharam. Respirei fundo. Pouco depois, as portas abriram-se e desci as escadas, recebendo no rosto uma golfada do ar quente e húmido, denso e perfumado, que cheirava a terra húmida e que sufocava. Respirei o ar pesado, o peito doía. O suor molhava a testa e descia-me pelas costas.
Lá fora, a noite negra. Era a estação das chuvas e sentia-se, forte, no bafo da noite, o perfume enjoativo da terra, dos frutos maduros, da canela, das flores. Olhei, numa curiosidade imensa. No largo da aerogare, vi árvores de flores brancas, magnólias perfumadas, e sebes de ibiscos cor do chá, os troncos duros e fibrosos das rosas de porcelana.

O motorista veio pegar-me na mala. Recostei-me no cabedal gasto, abri a janela procurando um fresco inexistente e fiquei de olhos presos nas praias de areia branca, nas filas de coqueiros inclinados para o mar. De repente, na escuridão, o fulgor de uma baía de contornos delicados suavemente iluminada pela lua amarela, com o reflexo dos barcos parados, baloiçando-se lentos nela, a escuridão das águas negras, e a espuma das ondas a brilhar numa lâmina de luar. Olhei, fascinada. Era a baía de Ana Chaves que nunca esquecerei.

O táxi continua. Viro-me ainda para a ver pelo vidro sujo, abaixo do recorte da floresta com as primeiras casas baixas, à entrada da cidade.
Agora, do meio da noite, entre o mar e a estrada surgem árvores gigantescas, as grossas raízes retorcidas à flor da terra, ao lado da balaustrada branca que corre ao longo da água."
(in Ilhas na Bruma, de Maria J.F.)
Os amigos

A África é a Amizade inesquecível -relembro os amigos de S. Tomé, alguns desaparecidos já, como a poetisa D. Alda Espírito Santo, o Sr. Semedo -grande companheiro desses anos, com quem eu falava como se meu pai fosse. Que era guarda e jardineiro. E conselheiro nos assuntos do 'quinté' com as minhas empregadas!

Esses todos que acompanharam a minha vida, a Dáy que foi para Angola e não voltou mais à Ilha. Que me telefona do seu telemóvel...

O Nini, o Maiqué, a Milly, a Adelina, a Diamantina...E o meu cão Zac que teve que se adaptar a tanta coisa e tanta companhia me fez, nos dias sem luz...


Como esquecer São Tomé?

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Histórias da Casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros (5)



o pintor de Portalegre, Renato Torres: o sobreiro

Mais um ano passou. O Verão veio com o calor do costume, os dias de vento soão, a Feira das Cebolas, as noites escuras e estreladas, as estrelas cadentes de Agosto, as constelações que via da janela do meu quarto.

A “Cassiopeia” era a minha constelação preferida, porque figurava um "M" de pernas para o ar -e o "M" era a primeira letra do meu nome!-, a Ursa Maior, a Estrada de Santiago, enquanto procurava refrescar a cabeça e o rosto naquele bocadinho de vento que às vezes soprava fresco.

E o Verão também passou e as férias acabaram.


O Outono e "Les feuilles mortes", por Yves Montand)
http://www.youtube.com/watch?v=JWfsp8kwJto&feature=related


E voltou o Outono que eu amava, os dias cinzentos, as folhas secas no chão, a neblina, as trovoadas...
O Outono e a melancolia do Outono.

As aulas tinham recomeçado.
Vi-me noutra turma diferente, noutra sala, desta vez escura nesses dias sem sol, desaparecera a luminosidade e o brilho das janelas do primeiro andar. O sentimento de me sentir em pleno céu.

As janelas de agora estavam viradas para a rua, a sala ficava no rés-do-chão.
As únicas salas de que continuava a gostar eram as de Desenho e de Ciências Naturais, as mesmas de sempre, no andar de cima, cheias de luz.
Novos professores, também. Lembrava com saudades os do ano anterior. Tinha crescido um pouco mas continuava a figurinha magricela e sensível de antes.


Um dia, para me chamar a atenção, uma professora deu-me com o ponteiro na cabeça e disse:
-”Estás sempre de cabeça no ar!”
Tinha-me distraído –como sempre fizera- mas até ali nenhum professor me “batera”!
Desatei a chorar, desconsolada e ofendida, com a cabeça nos braços.

Senti-me infeliz, abandonada, desprotegida.

A minha irmã, que era agora minha companheira de carteira, animou-me, cheia de pena de mim.
Que saudades tive, então, da salinha quente da D. Maria da Alegria, minha professora da primária!
Uma vez repreendera-me batendo com os nós dos dedos na cabeça.
-“Ai, esta cabecinha distraída!”, dissera.
Encheram-se-me os olhos de lágrimas e dei um soluço baixinho.

Ela percebeu, e disse logo, com um sorriso:
-“Vamos lá, vamos lá, pensa outra vez...”

Na sua voz, um pouco rouca, senti amizade.

Agora não, estava perdida num mundo adverso.
Lauro Corado, um dia de Inverno

Aproximava-se o Inverno. O frio cheg eara o vento vento fustigava os ramos das árvores; mas eu não conseguia vê-las do lugar onde me sentava.

A Maria Helena, minha amiga do ano anterior, e as suas histórias de fantasmas e de mortos ficara para trás, noutra turma. Não conhecia bem os novos colegas. Os professores eram outros...

Percebi que havia um trabalho a fazer, que ia crescer, ia ter que lutar, defender-me, proteger-me, e esconder a minha sensibilidade para não ser magoada.
Deixei de chorar, fixei os olhos no livro, sem falar, jurando estar atenta.
“Nunca mais me vão apanhar distraída!”, decidi nessa altura.
Tudo passou, tudo esqueci, voltaram as distracções, os olhares presos na janela a ver se os pássaros -que eu não podia ver- chegavam.

Eu e a minha irmã íamos todos os dias para o Liceu, subíamos a Rua dos Canastreiros, sempre de olhos no chão. Dizia quem nos via das janelas que nunca íamos a direito, sempre aos sss, e que de vez em quando dávamos um encontrão uma na outra. Parávamos mesmo ao cimo, a comprar boleima, que levávamos para o lanche.
Por vezes mudávamos de caminho, pelo Largo da Fonte Nova, olhávamos a Fonte, e continuávamos em frente, indo depois descer a rua que ia dar ao Liceu.

Noutro ano, noutra turma, eu mais cescida, foi o Dr. Reis Pereira, o poeta José Régio meu amigo, que me ralhou, por me “apanhar” a pintar os bonecos dum livro de francês, com lápis de cor.
Veio por detrás de mim, ditando umas frases, no seu passo silencioso, e disse:
-“Os bonecos do livro não são para pintar...”
Devia sorrir, ou talvez não, eu não o via, senti só o seu perfume leve de lavanda. Estremeci. Voltei a chorar...
Foi uma vez só e nunca mais me censurou, apesar de eu continuar a distrair-me.
Observava-me, chamava-me, dizia-me para ler o texto, sem elevar a voz, talvez com a doçura que sempre encontrei nele para nós três.

Entretanto, a Primavera chegara: tinham voltado a nascer os bichos da seda!
Sem darmos por isso, pois há muito os tínhamos esquecido. Os casulos, as borboletas tinham-nos impressionado. A minha irmã não tinha gostado das borboletas, metiam-lhe medo, e eu não queria tocar nos casulos ...
Um dia, a Florinda apareceu na sala com a caixa das camisas que continuara o tempo todo em cima do armário do quarto dela.

-“ Meninas, já viram o que aqui está? Está tudo sujo, uma porcaria...”
E mostrava-nos uma espécie de formiguinhas minúsculas a saírem dos montes de ovos que as borboletas tinham posto no ano anterior.
-“Deito-os fora?!"
-“Não!!!”, gritámos as duas ao mesmo tempo.
Voltámos a interessar-nos por eles, qualquer coisa nos despertava a curiosidade, nesse tempo...

Tudo voltou ao princípio.
De repente, os bichos passaram a ser do tamanho de um bico de lápis afiado, depois, do tamanho de um prego e iam ganhando a sua cor de marfim, quase translúcida, que parecia deixar ver dentro o verde das folhinhas de amoreira que devoravam.
E tudo recomeçou...
Com a Primavera.

Nota: A história da Cassiopeia -que eu não conhecia, claro- só por curiosidade:

Essa constelação está ligada ao mito de Cassiopeia: a vaidosa rainha da Etiópia que comparou a sua beleza à das Nereidas, filhas de Poseidon e por ele foi castigada.

sábado, 22 de maio de 2010

Histórias da casa Amarela: os bichos da seda da Rua dos Sapateiros, o Liceu e os professores (4)

Quadro de Arsénio da Ressurreição, bairro da Caganita

O edifício do meu liceu, o "Palácio Acciaioli", nessa altura chamado Liceu Nacional de Portalegre (antes, Liceu Mouzinho da Silveira, hoje Escola Normal Superior).

Os professores do liceu pareceram-me, nesse ano de mudança, pessoas distantes, cheias de importância, imponentes. E o Liceu era um espaço enorme, um mundo, aos meus olhos de criança habituados à salinha da casa da minha professora, D. Maria da Alegria...

Sentia-me ainda tratada como uma criança? Acho que sim, mas isso sabia-me bem, enquanto me ia preparando para crescer.
Respeitei-os. Recordo-os hoje, com nostalgia, sem raiva, sem qualquer ressentimento...
Um a um.
O Dr. Matos, professor de Ciências Naturais, severo mas justo, que nos ensinou a Biologia, a Botânica, em aulas sempre vivas; que nos acompanhava em excursões, a ver as grutas de estalactites, ali perto, a conhecer as plantas, as flores andando pelos azinhais e pelos campos de papoilas - a ver os pássaros; que nos ensinava a analisar os minerais, e os sistemas de cristalização que sempre me atraíram.
O Dr. Lomelino, grande matemático, que se sabia na cidade ter vindo “desterrado” para a província, castigado “porque não era da situação” -dizia-se no café, baixinho.
O nosso aéreo professor de Matemática, alto, um pouco curvo, que se perdia nos pensamentos, abstraído em qualquer coisa fora da aula, e que nós ouvíamos, sonolentos, nas aulas a seguir ao almoço, quando o calor descia sobre a terra alentejana.
Nessas aulas, que se passavam geralmente a seguir ao almoço, chamava um aluno ao quadro e adormecia, com a cabeça sobre o peito e o cabelo branco um pouco ralo a flutuar no ar.
De comum acordo, sem palavras, apenas alguns gestos... o silêncio caía na sala de aula, silêncio esse que se substituía à vontade de brincar que sempre havia, quando percebíamos que a aula passaria a correr se “ele” não fosse acordado...
Às vezes era já ao ouvir do toque para a saída que ele acordava. Um pouco espantado, tossia e dizia:
-“Muito bem! Muito bem! Pode sentar-se...”
E o aluno, considerando-se cheio de sorte, ia sentar-se aliviado e até recebia uma boa nota na caderneta.
Depois, fixava -com os seus olhos de um azul deslavado, detrás dos óculos de aros finos- a parede ao fundo e, sem nos ver, murmurava:
- "Podem sair..."

A D. Lucinda, mulher dele, uma figura pequenina e risonha, era a professora que nos ensinava Francês.
Petit poulet, petit poulet”, declamava ela. « Petit poulet, que fais-tu donc là, s’il te plaît ? »
E assim comecei a aprender francês, língua de que já tinha umas noções, ensinada pela minha mãe, que cantava connosco:
"Ah! Si j'étais/le rossignol qui chante/ dans la forêt/je viendrais près de toi.../ Et chanterais/ d'une voix si touchante..."
Na aula, levávamos horas a treinar o “ü” francês, um som que não percebíamos donde nos aparecia!

-Repita lá a Maria João: “Tü”...
E esticava os lábios para a frente, a mostrar:
- “Como uma flauta: “ü”...
Eu tentava, enganava-me, a turma ria.
Falava-nos com amor do Paris que amava, onde todos os anos iam nas férias de Verão.
Do Museu do Louvre, ou do Jeu de Paume, dos Invalides, da Tour Eiffel, foi ela a primeira a falar-nos.
Num Inverno mais chuvoso, apareceu com umas galochas de plástico transparentes que punha em cima dos sapatos nos dias de chuva.
Nós olhávamos, espantados, para aquilo.
Era nesses dias de chuva que, por vezes, ao cimo da Rua dos Canastreiros, ela e o marido mandavam parar o táxi, para nos darem boleia, a mim e à minha irmã.
O que era bem agradável, porque não apanhávamos chuva, mas que nos deixava cheias de vergonha quando saíamos do carro, à entrada do Liceu, em frente dos colegas que se riam à socapa de nós, talvez com uma certa inveja.

Não gostava das aulas de ginástica. Cansava-me aquela hora, porque a professora nos mandava fazer sempre os mesmos exercícios, obrigava-nos a correr à volta da sala, gritando em voz monocórdica, azeda e desinteressada.
Zinaida Serebriakova, auto-retrato quando jovem
Ficava em pé à nossa frente, nunca se mexia, vestida com roupas pesadas, saias compridas, sapatos atacados até ao tornozelo, sem graça, e um ar seco, sem sorrisos na boca, que um leve buço escurecia, batia as palmas abanando ao mesmo ritmo a cabeça penteada com tranças enroladas no alto.
Pelo contrário, gostava muito das aulas de Desenho, com o pintor João Tavares, bom aguarelista, que pintou, de modo forte e suave, a nossa cidade.

pintura de João Tavares, vista sobre a cidade

Havia pintores bons na minha cidade. Vou lembrar alguns que conheci nessa altura e foram amigos do meu pai: Arsénio da Ressurreição, Renato Torres, Manuel d'Assumpção, Lauro Corado.
João Tavares era um deles.
Eu gostava de desenhar, de pintar, e ele ensinou-me o que não sabia: as “aguadas” tão difíceis em que me aplicava, com a língua de fora, para não pôr manchas e deixar as nuances serem graduais e perfeitas; ou a ilustração dos passeios que dávamos para estudar Botânica, as tais excursões com o Dr. Matos.

O castelo de Marvão
Um dia, pintei uma ida a Marvão. Sei que havia um castelo lá no alto e era “eu” que descia a correr, entre as giestas.
Pedi ajuda à minha mãe (que pintava muito bem) para pintar essas giestas. Ela retocou tudo e os arbustos escuros ficaram lindos, salpicados de florzinhas de um amarelo vivo.
Normalmente, o Dr. Tavares fazia um breve elogio aos meus trabalhos. Mas, dessa vez, sorriu e disse só:
-"Mostra isto à tua mãe..."
Ao fundo da folha de papel Cavalinho, onde eu pintara o castelo e um caminho que descia a pique, tal como eu vira perto da vila de Marvão, ele desenhara com o pincel, a frase:
“Bravo, D. Zélia!”
Claude Monet, campo de papoilas

O Dr. Tavares era o pai da minha amiga Letícia, casado com a D. Gioconda de que falei...
Foram tantos os meus professores! Não os posso recordar todos, mas a lembrança não dói, sinto ternura e sorrio ao pensar em alguns deles.
E lembro com saudade o meu Liceu e as suas escadarias...

Escadaria principal do antigo Liceu Nacional de Portalegre
E isso é bom, penso.