terça-feira, 24 de agosto de 2010

Voltar a El-Jadida...



Estive pela primeira vez em El-Jadida era eu muito jovem. Pouco anos depois de ter casado...

El-Jadida, ou, antes, a antiga cidade de Mazagão, murada, uma das fortalezas que construiram os portugueses ao longo da costa de Marrocos.

Lembrava-me do “Hotel Marhaba”, o hotel mais fantástico que vi na vida! Ainda hoje, depois de tantas viagens, de ver tanto mundo, hotéis exóticos, clássicos, feios e bonitos, o “Marhaba” ficou-me na memória como o mais belo...

Era uma espécie de “8ª maravilha” do mundo. Do mundo dos meus sonhos, claro.

Situado na praia, com o areal branco e o mar em frente, plácido e azul turquesa, quase sem ondas, tinha atrás um jardim.

A vista era soberba. De um lado os pinhais, em frente só o mar. O mar, e um ou outro barco que deslizavam pelas águas em grande paz.

Lembro os cavaleiros que cavalgavam, ao pôr do sol, na areia molhada, pisando a réstea de sol dourada que tombava sobre a espuma das águas.

Nunca soube quem eram, nem de onde vinham, mas era um espectáculo inesperado e belo.

Os cavalos árabes, pequenos e nervosos, corriam no beige rosado da areia, levantando salpicos de água que ficavam suspensos no ar.

Os cavaleiros misteriosos olhavam em frente, cavalgando, indiferentes a tudo, sempre ao mesmo ritmo, desenhando as silhuetas, de perfil, na luz do poente.

Anos mais tarde, quando vivia em Marrocos, voltei a El-Jadida.

El-Jadida quer dizer, “a Nova”. Verdadeiramente “nova”, hoje, com prédios modernos, ruas bem traçadas, lojas, tráfico, agitação...

Tão diferente me pareceu da El-Jadida que eu lembrava, “a preto e branco”, mais próxima das fotografias que tirara nesse tempo do que da realidade, que esquecera...

A cidade velha, os fortins, os canhões ainda apontados para o largo, o bairro português com os nomes de ruas em árabe e em português -rua da Nazaré, rua Nova, por exemplo, essa felizmente continuava lá.

Com as mesmas vielas, os muros de pedra, as casas pobres, brancas, com as açoteias enfeitadas de parabólicas e de roupa estendida, o porto, e os portões gradeados, que fechavam entradas secretas, mergulhados na água azul.

Havia o restaurante “La Portugaise”, um restaurante simples, com mesas pequenas e toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, onde se comia óptimo peixe.

E era bom falarmos com o empregado, mesureiro, que nos tratava com a delicadeza marroquina, e sorria porque éramos portugueses.

Nessa rua, ficava a Cisterna Portuguesa.

Belíssima sala subterrânea, construída no século XVI por um arquitecto italiano, e que foi uma "sala de armas" na cidade fortificada: a sala onde os Príncipes de Aviz fizeram a sua “vigília”, antes de serem armados cavaleiros na manhã seguinte.

Mais tarde, passou a ser usada como cisterna, para abastecer a cidade em água doce, aproveitando também o curso de um ribeirinho que ali vai desaguar e onde as mulheres ainda hoje lavam a roupa.

O espaço é maravilhoso, não há palavras para explicar melhor. Em estilo gótico, mas com um equilíbrio e proporções harmoniosas que muito guardam da leveza renascentista. Toda a contrução é de uma grande elegância, desde o tecto em abóbadas, de tijolos pequeninos, aos capitéis fortes que sustentam as colunas arredondadas.

Uma abertura no tecto deixa passar a luz e a chuva. Em baixo, uma bacia de mármore, recolhe a água das chuvas.

Essa água que transborda do recipiente, e inunda o chão de tijolos, obrigando-nos saltar de laje em laje.

Com seus tons esverdeados, iluminada pela luz tamisada, que desce do alto, a superfície líquida reflecte a arquitectura perfeita, como espelho invertido.

A cor verde e dourada das águas paradas são de uma beleza inigualável.

Seguindo pela rua fora, vai-se dar à "Porta do Mar", hoje fechada com um gradeamento enferrujado, correntes e cadeado!

A velha porta era o único acesso à cidade. Quando esta sofria os cercos frequentes das tribos vindas do interior, o mar era a saída e a salvação. E a Cisterna era a possibilidade de sobreviver, porque a água não faltava.

Umas escadas sobem, do lado direito, até ao passeio da ronda, onde estão os velhos canhões ameaçadores, metidos pelas frestas da muralha.

Ao fundo, o "Bastião do Anjo" com a sua vista para o mar azul, lindo, onde a imaginação se perde, com o olhar.

E a recordação da outra El-Jadida volta.

Onde estava o velho “Marhaba”?

Como dizia Heráclito: “não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio...”

É uma verdade sólida e dura como pedras: tudo muda constantemente e nós também.

"E o “Hotel Marhaba”?..."

"Foi deitado abaixo, há uns anos...” responderam-nos.

"Talvez tenha sido melhor assim", pensei...

Acrescentaram que ia ser construído um hotel moderno no antigo local.

Desse sonho não restava, pois, se não a praia que nada era do que fora.

Onde os cavaleiros? E o pôr do sol daqueles dias? E nós? E a nossa juventude?

2 comentários:

  1. Quanta beleza,João,nas coisas e em ti, que sabes vê-las, ou recordá-las — porque às vezes, por desgraça, o que foi já só permanece na memória de quem o viu.

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  2. "Quanta beleza", sim, Maria João! E quanta generosidade, por partilhar tanto com os que têm a sorte de encontrar o "Falcão de Jade" no caminho. Tenho aprendido muito consigo, mas é o prazer e sedução das palavras, das imagens e da música que me trazem todos os dias aqui. E, apesar do seu ritmo impressionante, nenhum post faz esquecer o anterior... As cores, então, quase me tiram o fôlego...
    Obrigada!
    Um beijinho,
    Lurdes

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