segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Manhã na estação de Santa Apolónia

Ia viajar. O comboio esperava-me e eu gosto de andar de comboio. Adoro as estações. Sentia-me feliz. Delvaux, "gare forestière"

O dia bonito, lá fora está frio, bate a nortada. Mas o sol brilha.

De Chirico, menina na cidade
Dentro do café da gare, tudo é deprimente. Tem uma única vantagem: está quente.

As pombas entram pela porta e vêm comer os miolos de pão e de bolo, caídos no chão.
Sentado a um canto, apoiado no ângulo que formam as duas paredes, está um homem ainda novo, com a barba por fazer, embrulhado num velho duffle-coat de um castanho já sem cor e um barrete de lã.
Tem os braços cruzados sobre o peito, abraçando-se como para se proteger e guardar melhor o calor, informe, dorme profundamente.
Lá fora, e na entrada, fica indiferença do mundo. As gentes que vão e vêm, agarradas aos seus pequenos problemas quotidianos fundamentais.

Num banco, dois homens lêem os jornais "grátis" que se encontram por toda a parte.

Um deles parece já muito velho, traz uma camisola da lã grossa e áspera dos pescadores. O outro usa um blusão de flanela bordeaux, com um emblema de marca no lado esquerdo.
Hopper, os falcões da noite
Nenhum pediu de comer, nenhum come. Olhos vazios que não olham nem mesmo o jornal que têm apertado nas mãos, como um bem qualquer.
O senhor, de cabelos brancos e ralos no alto da cabeça, suspira enquanto vira as páginas que não lê.
Hopper, solidão (?)

Na mesa do canto, perto do balcão, com uma chávena de café em frente, um jovem mal vestido, pouco agasalhado, fala com alguém ao telemóvel sobre uma possível entrevista de trabalho e agarra uns papéis com força, falando deles como se fosse um curriculum. A sua riqueza.

Tem um ar febril e ansioso.

Senti um pouco da sua angústia entrar dentro de mim.

Há dias ouvira no telejornal inglês o jovem primeiro ministro conservador, milionário e aristocrata, dizer, com ar digno e convencido:
“Os desempregados que vivem com um subsídio de desemprego do Governo devem ir trabalhar, sem ordenado, nos serviços do Estado."
David Cameron
desempregados num centro de emprego
As ideias de trabalho sugeridas pelo lord inglês eram “ir apanhar garrafas” de plástico, com um pau de bico, fazer limpezas nos locais públicos, etc.

Não tenho nada contra o lorde que frequentou a famosa Escola de Eton e se formou em Cambridge. É a vida dele.

Cambridge, debaixo da neve (foto da minha amiga Luísa do blog "portugalagoia")

Penso só que certas pessoas, com privilégios (*), deveriam ter mais cuidado com o que dizem...

Não digo nada e passemos adiante.

Foi a “justificação” hipócrita dada que me indignou ainda mais.
Os desempregados perdem hábitos de trabalho, e é conveniente que os readquiram. Precisam de ganhar experiência. Experiência essa que até lhes pode servir mais tarde”.

Quando conseguirem arranjar trabalho, claro. Se arranjarem...
Muitos estão à procura há anos. Lembro uma senhora, técnica com experiência de muitos anos, no desemprego agora, entrevistada na TV/Arte que confessava o seu desânimo: “depois dos 50, com alguns anos de desemprego atrás, procuro, procuro e não arranjo nada...”
Pergunto eu: ganhar experiência, a limpar estradas e a apanhar garrafas? Experiência de quê? Que curriculum dá? Que formação?
“Perderam hábitos de trabalho”? Pois perderam. E por quê? É óbvio: porque estão desempregados...

Estão desempregados, por quê?

Porque foram corridos -quantas vezes arbitrariamente- dos trabalhos que tinham! E, assim, perderam o emprego e os tais ”hábitos” de que fala Cameron, o lord.

E, depois disso, não encontraram mais nada E, assim, “coitados”, perderam os tais hábitos de trabalho!
Resta-lhes protestar...


E habituaram-se a “fazer nenhum”, como tenho ouvido dizer a tanta gente.
Se calhar até gostam!”, pensam outros, quase com um pouco de inveja desse farniente obrigatório.

Não gostam. Falei com muitos.

Lembro-me de falar nisto nas aulas da noite. De ouvir esses comentários da parte das minhas alunas, quando uma das colegas estava com subsídio de desemprego. Lembro-me de ela se defender, quase a chorar, a queixar-se dessas críticas: "eu gosto de trabalhar!"
Essas pessoas sentem-se humilhadas, ostracizadoa pela “comunidade”, afastados, diferentes.

Outra coisa que eu sei é que Mr. Cameron não tem desses problemas. Nem ele, claro, nem ninguém da família estão em tal situação.
E por quê?
Porque a “eles” lhes arranjaram sempre um trabalho.

O rapaz que eu vi sentado à mesa do café da estação, aposto que gostaria de ter um emprego estável e um trabalho de acordo com a sua preparação e as suas habilitações!

Por que razão não há-de ele sonhar com dias melhores? Poder ter uma família, uma casa, com àrvores à volta, e um pouco de paz?
(*) Só uma curiosa notícia: alguns milionários americanos decidiram "propôr" ao governo dos Estados Unidos serem mais "taxados" porque sentem que é uma injustiça "pagarem" pela crise o mesmo que os da classe média ou os pobres...
Apreciei.

16 comentários:

  1. Cara Maria João,
    Penso que é deste texto que me fala no comentário à crónica. Gostei imenso e reflecte bem aquilo por que passa quem tem de vingar na vida por mérito próprio. Concordo consigo, o mérito quase nunca é reconhecido, pois em primeiro lugar reconhece-se o amigo (quase sempre incapaz!).
    Abraço,
    Daniel Rocha

    ResponderEliminar
  2. MJ Falcão, Maria João, se me permite, a sua história é incrível e de uma profundidade assustadora. A hipocrisia e a injustiça irritam-me também.
    Partilho o seu gosto por viajar de comboio e adoro estações.
    Gostei dos quadros que escolheu. Adoro Chagall e não conhecia este que usou e é magnífico.
    Beijinho e obrigada!

    ResponderEliminar
  3. Gostei muito do seu espaço!
    Obrigada pela partilha;o)

    ***
    Feliz semana e até breve****

    ResponderEliminar
  4. Pois é, amigos, nem a competência basta, nem a hipocrisia e a injustiça deixam de vingar...
    Resta o nosso protesto, de vez em quando.
    E os momentos de amizade, não é?
    Grande abraço
    o falcão

    ResponderEliminar
  5. Olá MJ!

    Ouça esta música do Fagner, ela transpira verdades de quem sabe o que é suar!

    http://carloskurare.blogspot.com/2010/04/guerreiro-menino.html

    Um abração atlântico!

    Carlos Kurare

    ResponderEliminar
  6. Um desespero, uma revolta, esta sociedade moderna que, como diz a Mafalda (QUINO) tem mais de moderna do que de humana...
    Fantástico texto!!
    Beijinhos e saudades
    Luísa

    ResponderEliminar
  7. Eu também gosto das viagens de comboio, são diferentes...
    Deixei um comentário ao seu comentário no Tempo. Obrigada uma vez mais.

    ResponderEliminar
  8. O drama do desemprego açouta muitos países, em Espanha já é demais,sempre à espera de que já tenha tocado fundo, e sem conseguir que se veja a luz ao fim do túnel.É um tema tão sangrante que não me atrevo a tocá-lo,quase me sinto culpavel, e por suposto impotente. Beijinhos

    ResponderEliminar
  9. Sta Apolónia, comboios(tb. gosto de andar de combóio), gente só, café deprimente, tudo isto eu conheço...Gostei do que escreveste e tb. senti que o pior é a angústia que sentimos por nada poder fazer...é como se nós tivessemos vergonha do que acontece a quem não tem sorte de ter os "amigos", uma vez que a competência, a experiência, o saber perde toda a importância.Um beijito João madade

    ResponderEliminar
  10. Gostei muito do seu texto.
    É também o que penso.

    um beijinho e um bom feriado

    Gábi

    ResponderEliminar
  11. Também me parece que o desemprego é o problema mais complicado que actualmente enfrentamos. Bem lembrado! Abraço e bom fim de semana.

    ResponderEliminar
  12. Olá Maria João.

    Não consegui resistir sem lhe enviar mais uma vez, as minhas felicitações por este magnifico texto que publicou. É um tema sensível, pertinente e actual, talvez como nunca o tenha sido com tanta evidência.
    Assistimos hoje a uma total falta de respeito pelas pessoas, na sua vertente mais humana : o trabalho. Enchem-nos de regras, como se estas produzissem! Inventam métodos que, nada mais são que canais direccionados ao enchimento dos seus bolsos, tudo em prol do bem comum, dizem, da chamada globalização, dizem, que o mundo não é mais o mesmo, dizem, etc. etc. e...continuam sempre a dizer.
    Mas sobre uma melhor distribuição de riqueza, nem uma palavra.
    Sobre os países sujeitos à mortandade causada pela fome, também é melhor esquecer!

    Como eu gostava de os ouvir papaguear os seus discursos com a barriga vazia!

    Cumprimentos.

    (helder)

    ResponderEliminar
  13. Obrigada pelos vossos comentários! Penso que estamos de acordo que este é um dos "flagelos" da tal idade dita moderna. Com a falta de respeito pelo ser humano, pelas suas exigências, pela sua dignidade.
    O vil metal tornou-se num valor em absoluto: há quem tenha -a minoria, os tais lordes & Cª- e a maioria de desgraçados, remediados, quase envergonhados...
    Uma pouca vergonha! Se tivessem a barriga vazia, não tinham força para tanta conversa fiada...
    Abraços e bom fim de semana para todos
    o falcão

    ResponderEliminar
  14. Gosto de tudo o que escreves... Profundidade, clareza, lucidez, carinho, não te faltam... continua a distribuir. é bom, e faz bem à alma...
    Beijos... muitos...

    ResponderEliminar
  15. Parabéns pela leveza das tuas palavras e o carinho que nelas depositas pois é quase poético ...sensibilizas quem lê de uma forma profunda.
    Não serão as "cadeiras " que tornam essas pessoas duras , secas de alma?
    Continua a "mostrar" a tua forma de saber ver...obrigada pela partilha bj

    ResponderEliminar