terça-feira, 7 de maio de 2013

Relendo "A ceifeira", de Fernando Pessoa...



Zinaida Serebriakova, Camponesa dormindo


A ceifeira
Emil nolde (1942) Papoilas

Ela canta, pobre ceifeira
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah! canta, canta sem razão!
O que em mim sente 'stá pensando.

Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!"

Fernando Pessoa ortónimo, in “Cancioneiro“


                                                       *

Pensei numa amiga que gosta de Fernando Pessoa. Gostava de "dar" a minha ideia sobre este poema de que muito gosto...

~Muita da temática de Pessoa anda por aqui... Tanto desassossego!



Ser e não ser, querer ser e não querer, pensar e sentir, inconsciência de se ser alegre e não se saber, porque inconscientes disso, consciência que mata o sentir que se é alegre... não se acabava. Porque é o poeta que brinca com a inteligência em cada segundo, porque é a loucura lúcida em pensamento que não sente.

Pensando neste poema, penso: o poeta  inveja a ceifeira? Sim, ele quer ser como ela (e não quer) e ao longo dos versos entre o pensar e sentir o coração balança: porque se sente alegria mas não tem consciencia disso, para que serve ser alegre? Não o sabes...

 E ouve a canção “ondular” ao sabor do movimento da ceifeira, das curvas do som da voz e fica alegre e triste ao ouvi-la.

“Ouvi-la alegra e entristece,”

“há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.”

Ela canta, “na alegre e anónima viuvez”,  ela é alegre porque inconsciente do “porquê”  do seu canto (até nem tem razões para estar contente), porque não sabe por que canta, e triste (viúva) porque não tendo consciência, não sabe que é feliz...

Na seara que ceifa, entre o trigo doirado e as papoilas de que o poeta não fala porque as não vê, ela canta apenas. Simplesmente, canta.

Van Gogh, Campo de papoilas 1890



“Ah! canta, canta sem razão!
E o que em mim sente  ‘stá pensando”,

Logo, o poeta, "pensando", tendo “consciência”, percebe que não pode ter essa alegria, de quem canta  “sem razão”.

“Ah, poder ser tu, sendo eu!”

Impossível...

“A tua incerta voz ondeando!“ , a voz que ele desejaria ter talvez, mas sendo consciente dela.

Impossível.

Desejava  que o canto se derramasse no seu peito, mas como fazê-lo, se o não sente?

Invoca o campo, a canção (Inconscientes)... mas sabe que a ciência ( o saber, o ser consciente) pesa.
E a vida é breve...
Van Gogh, O ceifeiro


“Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!”

De facto, “aquela alegria que as coisas têm de fora” não é real. Só as coisas a têm. Graças ao imaginar , podemos experimentar a alegria, mas é sempre “de fora”...

Ser inconsciente é “não ser”:

“Só a inocência e a ignorância são
 felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
Que é ser sem no saber?
Ser como a pedra,
um lugar , nada mais.”
(O horror de Conhecer, V)

A alegria inconsciente não é alegria, porque não sabe que o é... Oscila o poeta entre o que o horroriza: o horror de pensar, e, simultaneamente,  o horror do aniquilamento de “não ser” que  significaria a morte absoluta.

Dilema irresolúvel.

“Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu! “
Van Gogh, Campos com céu nublado


Querer ser “ela”,  inconscientemente alegre, mas “saber”, ter consciência dessa alegria? Da inocência dessa alegria simplesmente sentida?

Zinaida Serebriakova Camponeses 

Impossível. Porque ser inconsciente é não ser...



“Quanto mais fundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar..."
(O horror de Conhecer, IV)

Como dirá noutro poema, lamentando os paradoxos do seu pensar:

“(...) ó horror
 paradoxal deste pensar...”
(O horror de Conhecer, XVII)

Como muito bem escreveu, sobre este poema , Jacinto Prado Coelho, ele  que tão bem soube entender  o poeta:


“Poema da ambição impossível de ser conscientemente  inconsciente - e o sabê-la impossível contagia de tristeza o canto da ceifeira”.

Fernando Pessoa nunca terá a alegria da ceifeira... Resta-lhe pedir aos campos, à natureza que o levem e lhe resolvam o dilema. Ele, que nada prende, ele "caçador só do uivar dos lobos longe", ele -quem sabe? Sim, quem sabe? Talvez a sombra que passa fique na sua alma... 

E talvez o leve, ao passar. 


"Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!"


De facto, um dia disse:

 “Cai sobre mim, apagamento meu!
Querer querer, inútil pedra ao mar!
Saco p’ra colher vento, cesto de água,
Caçador só do uivar dos lobos longe...”
(O horror de Conhecer, XX)

E cai sobre nós a tristeza do impossível ser alegre do poeta...

Van Gogh, Seara com corvos (1890)


7 comentários:

  1. Vim fechar o ordenador e vi o teu comentário à minha madame Bovary. Respondi-te, e já morta de sono vim até aqui, e encontrei-me com umas filosofias que a esta hora já não consigo pòr em ordem. Olha, deixo-te os versos do gato, que são mais do mesmo:

    Gato que brincas na rua/ como se fosse na cama/ invejo a sorte que é tua/ porque nem sorte se chama,/ Bom servo das leis fatais/ que regem coisas e gentes/ que tens instintos gerais/ e sentes só o que sentes./ És feliz porque és assim,/ todo o nada que és é teu,/ eu tenho-me e estou sem mim,/ pertenço-me e não sou eu...

    Não sei se está correcto, mas é isto mais ou menos. F. Pessoa tinha uma neurose de cavalo, talvez sem ela não tivesse sido o génio que foi. Talvez.
    Outro beijinho, no meu blog tens um.

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  2. É muito bonito o poema.
    Gostei de ler a interpretação que ajuda a percebê-lo melhor.
    São lindas todas as pinturas que escolheu.
    Um beijinho grande

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  3. Olá Maria João,
    Acho que este texto da Ceifeira e as considerações que faz sobre ele dão um bom retrato do Pessoa: o desassossego e a indefinição, o querer ser e não o ser, a possibilidade impossível, a procura de algo que não atinge, a alegria na tristeza...
    Sinceramente gostei do que escreveu.
    Abraço amigo
    Raul

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  4. Uma belíssima viagem

    pelo interior das pedras

    Bjs tantos

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  5. F. Pessoa passou toda a vida desassossegado! Nós, agora, sabemos o que isso é...

    Adorei as ilustrações e a ligação com o texto.

    Um beijinho.:))

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  6. “Só a inocência e a ignorância são
    felizes, mas não o sabem. São-no ou não?
    Que é ser sem no saber?
    Ser como a pedra,
    um lugar , nada mais.”

    Sou suspeita porque gosto muito, muito, muitooooooooooooo de Pessoa e o que encontrei foi o seu mundo desassossegado e por isso imensamente maravilhoso.
    Uma postagem de excelência como é hábito mas esta tocou-me especialmente:))
    Beijinho.

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    1. Sei que gosta muito dele. Eu "dei-o" muitas vezes nos últimos anos, nos 12º, antes de me reformar.E Fiquei a gostar mais dele... Tenho imensos "apontamentos" porque tive de pensar muito sobre ele....
      beijo

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