quarta-feira, 28 de maio de 2014

Ivan Bounine, Leão Tolstoï e os outros...



Volto a Tolstoï, para satisfazer a minha amiga Isabel, que ainda tem muita curiosidade. E ainda bem!


No livro que lhe dedicou Ivan Bounine, encontro muitas coisas. Intitula-se “La délivrance de Tolstoï” (1) e fala dessa necessidade de libertação.
Délivrance? A libertação receada e ambicionada.
Libertação da vida? Ou, aprendizagem da morte todos os dias da vida?


Aproveito para falar também do livrinho precioso de Michel Aucouturier, La grande âme de la Russie” (2).







Leão Tolstoï impressiona muita gente. Personalidade riquíssima, muito complexa, cheia de dúvidas e de hesitações, cheio de contradições.
Uma vez Sophie criticara-o por mudar de opinião e ele respondera: “Devemos mudar, se quisermos melhorar”.

Na madrugada de 29 de Outubro de 1910, Tolstoï abandona a casa da sua propriedade de Iasnaya-Polyana para morrer. 

a casa de Iasnaya-Polyana (imagem da net)


Foge para viver em paz os últimos dias”, tal como ambicionara? (p.12) 
Foge para se livrar da presença opressiva da mulher, Sophie Andreïvna Tolstova? 
Sophie e Leão Tolstoi, Set 1910, 2 meses antes da morte


A mulher que amou sem dúvida e cuja presença se lhe tornara penosa. Um grande amor que acabou em ódio? Acontece muitas vezes. Só que da parte de Tolstoï não foi, talvez, um grande amor. Tolstoï estava apaixonado pela mãe de Sophie.
Faziam uma diferença de muitos anos ele e a mulher. Mas não interessa esse pormenor.


a família de  Tolstoï, em Iasnaya-Polyana (net)

Quando descobre a fuga de Tolstoï, Sophie desespera-se, soluça pela casa fora, como uma louca e tenta suicidar-se duas vezes nessa manhã. Há uns tempos que sofria de desequilíbrios nervosos.

imagem do livro "La grande âme russe"

A fuga na noite, a tensão, o frio, a idade avançada fazem-no adoecer. Tem febre, custa-lhe a respirar, o coração está cansado. A filha, Alexandra Lvovna, acompanha-o e serve de mensageira entre o pai e a mãe. Leão Tolstoï não quer de modo nenhum que a mulher se aproxime, quer morrer em paz.



Ele não quer voltar. E não voltará. 

Escreve Bounine: Não queria morrer como um homem do mundo em que vivera e que esgotara, prefere a morte do animal, segundo a mais antiga lei da natureza, no mistério sagrado que rodeia a morte de uma fera, ou de um pássaro, em liberdade.”
... ... ...

No dia 30, escreve à mulher e, depois, aos filhos. Diz-lhes que não voltará a casa e termina assim: “Adeus, tentem tranquilizar a vossa mãe, por quem tenho o sentimento mais sincero de compaixão e de amor (…)”.
a família de  Tolstoï

Ela vem, mas não pode aproximar-se. De noite, vai espreitar pelas janelas do quartinho da estação de Astopova, onde ele está a morrer. Por entre as cortinas, fixa o vulto deitado e chora. Amparada pelos filhos, volta para a carruagem onde viera e onde ficou instalada até ele morrer.
Audrey Hepburn, primeira Natasha do cinema

 Conta Bounine: "À filha, Alexandra, recomenda: ‘Entrega aos teus irmãos esta carta quando eu morrer.’ E chorou.  O estado de saúde piora. A noite de 3 para 4 de Novembro foi uma das mais penosas. À tardinha, enquanto lhe arranjavam a cama, disse: 'Os moujiks, os moujiks, como eles sabem morrer!' E chorou outra vez.”
... ... ...
A estação de Astopova

“A manhã do dia 4 foi alarmante. Um sinal funesto apareceu: puxava o cobertor para si, sem parar, e os dedos passeavam, por cima dele, desordenadamente.
- Não pense, pede-lhe Alexandra Lvovna.
- Mas como não pensar! É preciso pensar!
(Delirava?)
- Venham cá, de que têm medo? Por que não vêm ajudar-me todos, por favor … Procurar, procurar sempre.
O filho Serge Lvovitch conta que o ouviu dizer, no delírio:
«Sempre… Eu…sempre manifestações… chega de manifestações… é tudo

Bounine acrescenta: “Estas suas palavras estão carregadas de sentido; nada as pode apagar. No Diário, Tolstoï escrevera, poucos meses antes: 'As palavras dum moribundo são muito importantes.'

A 7 de Novembro de 1910, Tolstoï morre na pequena estação de Astopova.

O retrato que Ivan Bounine traça dele, com pinceladas rápidas e precisas, recordando o que outros escreveram depois da morte do escritor, reunindo excertos dos seus livros, contando os breves encontros com o aquele considerava um Mestre, e falando da admiração que tinha por ele.



 “Muito jovem, já sonhava encontrar Tolstoï. Tinha ouvido falar dele desde pequenino. Lembro-me que o meu pai gostava de irritar os seus vizinhos, dizendo quais deles leriam “só” a guerra e quais “só” a paz: havia os saltavam tudo o que se referia à paz e os outros que ignoravam tudo o que se relacionava com a guerra.  A natureza dos sentimentos que Tolstoï me inspirava era muito complexa."

o jovem Tolstoï, na guerra da Crimeia (1854)

"Quando o meu pai contava lá em casa: ‘Sim, conheci Tolstoï durante a campanha da Crimeia…’, eu olhava-o com admiração: ele tinha visto Tolstoï. (…) Tinha uma paixão pela imagem que criara dentro de mim e que aspirava encontrar na realidade.” (p.58)

Anos mais tarde, numa ida a Moscovo, um amigo arranja-lhe um encontro com o mestre na casa da rua Khamovniki. E realiza o seu sonho. Toda a emoção desse encontro vem descrita em muitas das páginas do livro. Não esqueceu nada do que ouviu

Para que veio ver-me? É um jovem escritor? Escreva tudo o que tiver na vontade, mas não esqueça que a finalidade da vida não é essa.”

E de repente, começa a perguntar-lhe tudo, e não para de querer saber coisas sobre Ivan: o que quer escrever, o que lhe interessa na vida, o que pensa.

No fim, Tolstoï pede: “Venha ver-me quando voltar a Moscovo! Não espere nada de excepcional da vida. Nunca será mais feliz do que hoje. Não há felicidade… Há apenas momentos de felicidade. Aproveite-os. Aprecie-os. Viva deles.” (p.67)

Os quatro rapazes Tosltoï: Dimitri, Nicolau, Sergei e Leão 

Fala dos momentos felizes da infância e de como foi dura a passagem para a adolescência:

Foi o maior sofrimento da vida. Esta nova idade parecia-me terrível. Só o sentimento da dignidade e da consciência de cumprir um dever me aguentava. Mais tarde, no correr da vida, aconteceu-me muitas vezes viver momentos semelhantes nas encruzilhadas da vida. Senti então a tristeza do irrevogável, do irreparável. (p. 51) No momento em que tive de mudar o bibe para a roupa de adolescente, vi o que sofria. Que pena, tanta pena…mas era preciso. Pela primeira vez percebi que a vida não é um jogo mas uma empresa difícil. Pensarei o mesmo quando morrer? Compreenderei que a vida futura não é um jogo, mas uma empresa difícil?


… … …  
E é à volta dessa futura empresa difícil (la délivrance: do tempo que decorre entre nascimento e libertação final) que Bounine escreve o seu livro.
“Porquê esta angústia? Medo de quê?" - “De mim”, responde, quase imperceptivelmente, a voz da morte. “Porque eu estou aqui”.

Tolstoï pensa: “Mas a morte não devia existir. Ela não existe. E a vida futura é um absurdo…”. E termina a frase, escrevendo: “… um absurdo, porque a vida está fora do tempo”.
Nas Confissões (1882) escrevera sobre a obsessão do suicídio que tivera muitos anos antes. E que vencera. A razão dessa ideia era no fundo a do absurdo da vida, se a morte tudo anula.


A minha pergunta, aquela que, há cinquenta anos, me levou à beira do suicídio, era a mais simples das perguntas, a que cada homem traz dentro de si, desde a criança mais tonta ao velho mais sábio (…) ‘há na minha vida um sentido tal que não seja destruído pela morte que me espera inevitavelmente?’ ” (in La grande âme de la Russie, p.62)

Em 1860, quando morre o irmão Nicolas (1825-1860) com 35 anos, escreve ao amigo e poeta Fet: “Quando o homem atinge um grau superior de evolução e deixa de ser estúpido, apercebe-se que tudo é absurdo e ilusório, e que a verdade que tanto procurámos - essa verdade é assustadora”.
Quatro anos antes, morrera o irmão Dmitri, com 27 anos.
A morte de Nicolas marca-o muito. Escreve no Diário, no dia 13 de Outubro de 1860: “A morte de Nicolau foi a impressão mais forte da minha vida”. 
Era o irmão preferido. Era ele quem contava histórias aos outros, as histórias dos “irmãos formigas”. Sentados no chão, pelos campos da propriedade de Iasnaya-Polyana, eram os irmãos amigos, sempre juntos, fazendo-se companhia, como as formigas. Um dia, Nicolau diz que quer ser enterrado naquele sítio mesmo onde estavam sentados, ali no meio do campo verde. E pôs uma palhinha verde no local. 
Tosltoï, pintado por Repin: nos campos e a escrever

Dias antes de morrer, Tolstoï, de passeio com a filha por esses sítios, pede para ser enterrado ali. E, de facto, é nesse campo de Iasnaya-Polyana que hoje repousa.

túmulo onde repousa na sua propriedade

Sim, a morte era uma realidade demasiado presente.

Príncipe André, Batalha de Austerlitz

Ivan Bounine recorda-nos as palavras do príncipe André, na véspera da batalha de Borodino: “Ah, meu coração, nestes últimos tempos a vida tornou-se-me penosa. Vejo que compreendo coisas a mais. E não é bom colher na árvore do conhecimento do bem e do mal.”


E Bounine afirma: “Nem o príncipe André, nem o próprio Tolstoï podiam evitar colher dessa árvore”. Pensar, para eles, era inevitável, e o conhecimento do bem e do mal também. 
Saber tudo, querer compreender tudo. No leito de morte, ainda dita o seu Diário e diz a quem lhe está ao lado: - Pega no caderno e escreve…

«Como se tivesse sempre 15 anos, desejo compreender o incompreensível.» (op. cit. p. 144)

E a morte ronda, na sua obra, sempre próxima. Até à estação de Astopova.
Começa a sua luta sem fim com a vida que “vai morrer”, de que falara nas “Confissões”, escreve Bounine (p. 192).

Sim, na pequena estação de Astopova, na fuga de Iasnaya-Polyana, Tolstoï vai defrontar-se, pela última vez, com a vida e com a morte.
... ... ... 

Michel Aucouturier (1933), tradutor e especialista de Tolstoï e da Literatura Russa

No livro de Michel Aucouturier, há textos curtos extremamente interessantes, apontamentos do autor, breves comentários às obras e às fotografias.
E testemunhos de  escritores contemporâneos de Tolstoï sobre ele. Refere testemunhos de escritores que, depois da morte de Tolstoï, falam dele.
Enterro de Tolstoï na sua propriedade

Gustave Flaubert, por exemplo, que considera Guerra e Paz uma obra-prima, sobretudo os dois primeiros volumes. Considera o 3º volume mais fraco e “cheio de filosofices”.

Em carta a Ivan Tourgueniev (3) escreve: “Obrigado por me indicar o romance de Tolstoï, é de primeira ordem! Que pintor e que psicólogo! Os dois primeiros volumes são sublimes; (…) no terceiro, vai-se abaixo: vemos o senhor, o autor, o Russo, enquanto até ali se via a Natureza e a Humanidade.” E acrescenta: “É forte! é bom! muito bom!”

Ou Romain Rolland, autor do romance inesquecível, “Jean Christophe”, que tem uma admiração sem limites pelo escritor e pela sua obra.


Assim testemunha ele, na biografia que escreveu sobre o escritor:
imagens do enterro de Tolstoï

A grande alma russa, a chama que se acendeu há cem anos na terra, foi, para os da minha geração a luz mais pura que iluminou a nossa juventude (…) estrela consoladora. (…) Entre todos, Tolstoï - que foi mais do que um artista, foi um amigo, o melhor amigo, e para muitos o único amigo verdadeiro em toda a arte europeia. (…) Memória  sagrada, o meu tributo de reconhecimento e de amor”. (op. cit., p.108)
… …

O que fica de Leão Tolstoï ?
Anton Tchekhov escrevera, numa carta a Menchikhov, em Janeiro 1900, citada por Aucouturier.
Tolstoï, Gorki e Tchekhov (1900)

Receio a morte de Tolstoï. Se ele morresse, haveria um vazio enorme na minha vida”. Não teve esse desgosto, morreu antes, tão jovem ainda…
E Maxyme Gorki, em 1919, afirmará: “Eu sei como toda a gente que não há homem mais digno, do nome de génio, mais complexo, mais contraditório e mais belo na sua totalidade. Sim, em tudo, sim, em tudo!
Olhem o homem mais extraordinário que vive na terra! Porque ele abarca  tudo, por assim dizer, e é antes do mais, um homem, o homem da Humanidade!” (5) 

imagens do enterro, gentes que se deslocam para assistir

O que ficou de Tolstoï? O que escreveu, claro. A curiosidade de tudo saber que o levou a escrever romances incomparáveis. A querer entender os homens e a natureza. O pensamento claro. O conhecimento da árvore da vida e da morte, do bem e do mal. 



E, ainda, a palavra que reserva aos que se lhe dirigem, aconselhamdo-os. Como da última vez que Ivan Bounine o encontra, em Moscovo, na rua Arbat, e se interessa pelo que está a escrever. 
pintado por Ilya Repin

Perante o desalento de Bounine, que considera tudo o que escreveu inútil, e receia não mais ter assuntos para escrever, Tolstoï protesta com veemência:
“O quê? Se não sabe sobre o que há-de escrever, escreva isso mesmo, que não sabe o que há-de escrever. E diga porquê. Procure a razão dessa ausência de assuntos e descreva-a.” 

No fundo queria dizer-lhe: "Não desistam, nunca!" Penso  que é uma lição para todos nós!


sala de jantar da casa-museu de Tolstoï em Iasnaya-Polyana (net)

Quem foi Ivan Bounine? Poeta e romancista,  nasceu em 22 de Outubro de 1870, em Voronejo, na Rússia, e foi Prémio Nobel de Literatura em 1933. Morreu em Paris em 8 de Novembro de 1953.


(1) Ivan Bounine, La délivrance de Tolstoï, (a 1ª edição é da Gallimard, 1939, e a que li é das Editions L'Oeuvre, Paris, 2010)
(2) Michel Aucouturier, La grande âme de  la Russie, Gallimard Découvertes 
3) in Correspondance Flaubert-Tourgueniev, carta de 21 de Janeiro de 1880. Foi Ivan Tourgueniev quem deu a conhecer em França, onde vivia, a obra do escritor quando sai a tradução de Guerra e Paz, em 1879.
(4)   Do livro (biografia) de Romain Rolland, Vie de Tolstoï, Hachette
(5)   Maxime Gorki, Uma Carta, em “Souvenirs sur Léon Nikolaievitch Tolstoï”, Berlim, 1919

Sobre o enterro do escritor:


Boas notícias! Vai sair em 2015 uma nova série inglesa da BBC inspirada no romance "Guerra e Paz".

sábado, 24 de maio de 2014

Deixo estas belas imagens da pintora Laura Muntz Lyall


"papoilas do Oriente" 

Laura Muntz Lyall (nasceu em 18 de Junho de 1860,  em Leamington Spa, no Warwickshire, e morreu, em Toronto, em 9 de Dezembro de 1930. Ainda criança, os pais partem para o Canadá.


Pintora impressionista de nacionalidade canadiana. Jovem, estudou para professora mas o seu interesse pela arte levou-a a ter loções de técnica de de pintura com W.C. Forster, de Hamilton. 

"artful wednesday"



"narcisos do bosque"


As suas qualidades levam o professor a aconsehá-la  a partir para Paris e continuar os estudos na famosa Académie Colarossi. 

Aí entusiasma-se pela pintura impressionista. Quando volta para o Canada abre o seu estúdio em Toronto e torna-se sócia da Royal College of Art.
"Árvores à beira-rio", 1990

"Mulher de branco, a passear no parque"


"uma história interessante"


As suas pinturas de crianças, numa atmosfera de calma e tranquilidade ou de filhos e mães, tornaram-na conhecida.
Penso também nas jovens coloridas que lembram nas cores, nos motivos florais um pouco os Pré-Rafaelitas (1) seus antecessores ingleses.
"mãe e filha"

"leitura no jardim"


Joan Murray dedica-lhe uma biografia: "Laura Muntz Lyall - Impressions of Women and Childhood".


William Holman Hunt , Isabelle e a jarra

John William Waterhouse (1871)

(1) “A Irmandade Pré-Rafaelita (Pre-Raphaelite Brotherhood ou PRB em inglês), também Fraternidade Pré-Rafaelita ou, simplesmente, Pré-Rafaelitas, foi um grupo artístico fundado em Inglaterra em 1848 por Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), William  Hunt (1827-1910) e Sir John Everett Millais (1829-96). 

Everett Millais, Ophelia, (1851-2) 


Dedicaram-se principalmente à pintura. E, mais tarde, Edward Burne-Jones (1833-98) e John William Waterhouse (1848-1917) também fazem parte.
Burne-Jones, 1870

Dante Gabriel Rossetti, A Noiva,1885


(...)  desejam devolver à arte a sua pureza e honestidade anteriores, que consideram existir na arte medieval do Gótico final e Renascimento inicial (Proto-Renascimento). Ao se auto-denominarem pré-rafaelitas realçam o facto de se inspirarem na arte anterior a Rafael, artista que tanto influencia a academia inglesa.” (wikipedia)