segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sonho de uma noite de Outono…

 Como tentar contar o sonho desta noite de Outono quente?…

O "nosso" inefável Pessoa diria: “fui eu que o sonhei?” Mais me parece uma história inventada do que um sonho verdadeiro. 
"Mas os sonhos não são verdadeiros...", diria o meu amigo filósofo, o Ratinho Poeta. 

Sonhei um sonho? Mas não tenho as dúvidas pessoanas: fui eu que o sonhei.
O que é certo é que acordei a meio da noite e rabisquei umas notas num bloco, para não me esquecer - como sempre acontece aos sonhos que sonhamos.
De manhã, estava espantada comigo mesma: "como é que a nossa cabeça trabalha o tempo todo"!

Há pouco, confessei mesmo ao Ratinho:
- A nossa cabeça pensa mesmo a dormir!...
Ele olhou-me com o seu ar filósofo e disse:
- Pensar a dormir? Hum, hum… Deve ter sido para te esqueceres das dores nos pés…
- Sim, acrescentou logo o Ouricinho. Para não pores o pé fora da realidade!



E riu-se. Olhavam-me os dois, ironicamente, saltitando do sofá ou da cama para dentro do saco de viagem. O mesmo onde estiveram a observar-me, atentos, todo o tempo em que estive no hospital, há dias. 



Prontos a intervir à menor queixa, ao menor gemido…
- Conta, conta lá o que sonhaste! Eu nunca me lembro dos sonhos, lamentou-se o Ouricinho.
- Não te lembras mas eles estão lá, dentro de ti –disse o Ratinho Poeta. É como os versos que inventas...


Não posso esquecer que ele é um poeta. De facto, concentrou-se, de bigodes franzidos, e disse ainda:
- Sim. Ficam armazenados noutra zona do teu cérebro, fazem parte da bagagem da tua vida, mesmo que o pensamento se esqueça. Já dizia o Fernando Pessoa...
E declamou, solene, com um grande sorriso:
"Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento..."

- Não sei se é assim como tu dizes, interrompeu o Ouricinho. Ele dizia tantas coisas diferentes esse poeta! 
Virou-se para o meu lado:
- Conta lá o teu sonho!

Reli os apontamentos no bloco-notas.
- Bem, era um sonho perigoso…
- Perigoso? Um pesadelo?, assustou-se o Ratinho que perdeu o ar convencido com que falava com o amigo e com que declamara o poema.
- Não, acho que não. 
Queria descansá-los. Não era um sonho de pesadelo.
- Era um sonho e eu sabia que não era real. Fazia-me companhia- Era mais uma espécie de jogo. Queria acordar e, ao mesmo tempo, sabia que nem podia dormir…
O Ouricinho interrompeu-me, excitado:
- É mesmo assim nos sonhos! Queremos sair e não podemos. Sombras atrás de nós...Sempre perdidos nuns caminhos nevoentos!

Lembrei-me de uma amiga que me disse há pouco: “eu nos sonhos ando sempre perdida. Mas na vida real também…”
Tentei explicar melhor o meu sonho.
- Era uma espécie de jogo, ou de desafio. Um grupo de poucas pessoas cercadas por um perigo desconhecido. Algo que rondava por ali e que não víamos. E tínhamos que nos manter acordados - a nós e aos outros. Era vital não adormecer! Quando um se cansava, logo tinha que chamar pelo outro…

- Que giro! Tens tantas ideias, Jana querida.
Agora começaram a chamar-me Jana...
- Continua!, disse o Ratinho. Não são ideias, Ouricinho Dan, é um sonho, que mais parece um filme de suspense

O Ratinho punha um ar muito sério nestas ocasiões. Reli o papelinho com algumas palavras soltas.  A história ia-se desenvolvendo na minha cabeça, com várias peripécias à mistura, mas muito confusa. 
Continuei:
- A ideia era provocar o outro, para ele ficar alerta.Desafiá-lo! Só sei que um de nós tinha de estar sempre acordado e o desafio consistia em espicaçá-lo naquilo em que ele era bom. Um especialista.
- Uma espécie de James Bond, não?
- Não me lembro bem, Ratinho, era especialista de alguma coisa. Podia ensinar os outros. Lembro-me de uma frase: Fala essa língua que só tu sabes”. E eu falava até quase adormecer. Os outros interessavam-se e abriam os olhos, de repente, e esqueciam o sono… 
Fiquei calada um momento, a pensar no que queria dizer.
- Não se podia desistir! Quando o cansaço tomava a nossa força, logo um de nós dizia: “cavalga a tua onda, és um navegador!” E uma onda erguia-se do nada e alguém a cavalgava.



- Com prancha de surf? Não tinhas medo?
O Ouricinho estava entusiasmado e não tirava os olhos de mim.
- Talvez fosse…o que mais podia ser?, hesitei.
- Podia ser a onda de Hokusai! A Grande Onda de Kanagawa!
Era o Ratinho, claro! Aquele sabichão!
- E depois?, perguntava ele, ansioso.
Quis lembrar mais...
- Disseram-me assim: voa! Tu és um pássaro! 

Pássaros migrantes (Marisa Volonterio)


- E voaste? Que lindo!, disse o Ouricinho, entusiasmado. E que mais te disseram?
- Outra pergunta: vês a lua? Caminha! 

Sim, era uma lua, mas não conseguia recordar bem. Tudo se transformava numa nebulosa. Ia perdendo as imagens, pouco a pouco.
- E andaste na lua?... Tinhas os teus sapatos de cristal? Eras de certeza uma princesa...
Jorge Barradas, cerâmica

- Não sei, Ouricinho. Acordei nesse momento.
- É sempre assim nos sonhos...
E o Ouricinho encolheu os ombros, resignado. Eu limitei-me a rir.
- A verdade é que metia uns sapatos de astronauta.  Vi que tinha de calçar os sapatos sozinha porque o Manuel estava profundamente adormecido.
- Ah! Era o próximo desafio: "calça os sapatos e anda!" Hihihi…


O Ratinho ria-se, divertido com a própria graça.
O Ouricinho estava silencioso e parecia triste.
- Era bonito o teu sonho. Ajudavam-se todos, não era? Defendiam-se uns aos outros contra o perigo comum. Solidariedade...
O Ratinho disse, sério e melancólico, encostado à minha almofada:


- Ah!, sim... “Si tous les gars du monde voulaient se donner la main…”
- O quê?
O Ouricinho não sabe francês. Expliquei-lhe.
- São uns versos do poeta Paul Fort. Dizem: "se todos os homens do mundo quisessem dar-se as mãos…"
- Ou, melhor, as meninas...
E o Ratinho continuava, emendando os versos e cantarolando uma melodia:

"Si toutes les filles du monde voulaient s'donner la main,
  tout autour de la mer elles pourraient faire une ronde...."
E eu traduzia para o Ouricinho perceber:
- ..."À volta do mundo fariam uma roda enorme…"
- De mãos dadas, sim, percebi, percebi. Tão bonito o teu sonho! Ainda bem que mo contaste! 

O Ouricinho foi sentar-se ao lado do amigo. O Ratinho disse, sério:
-  O sonho quando o dividimos com os outros...torna-se possível, não é? "Um sonho que tu sonhes sozinho/ é apenas um sonho. Um sonho que sonhes com os outros é realidade."
- O que é?, perguntou o Ouricinho. Gosto muito!
- São uns versos do "beatle" John Lennon


O Ouricinho pôs-se a bater palmas. Sim, decididamente no dia de hoje, depois do sonho, prefiro estes versos de Fort e de John Lennon ao desespero de Pessoa! 


* * * 
"Si toutes les filles du monde voulaient s'donner la main,
  tout autour de la mer elles pourraient faire une ronde.

Si tous les gars du monde voulaient bien êtr' marins,
  ils f'raient avec leurs barques un joli pont sur l'onde.

Alors on pourrait faire une ronde autour du monde,
  si tous les gens du monde voulaient s'donner la main.

(Paul Fort, Ballades Françaises

* * *  

E, por caso, fui hoje dar com um blog em que encontro Paul Fort, Pessoa, tudo num poema de Jorge de Sena que evoca a morte do poeta francês! 
...Pero que las hay... (las brujas!)


http://ruialme.blogspot.pt/2004/05/propsito-do-poema-que-o-quartzo-passa.html

JORGE DE SENA (Lisboa,1919- Santa Bárbara, 1978)

A PAUL FORT (+20/4/60)

Como se fosse homem de ficha e método, registo
no apêndice bibliográfico de uma história literária,
a data da morte de Paul Fort, que, subitamente,
recordo não ver consignado ao pé da outra data
em que nasceu (de resto, foi uma surpresa, porque
era como se ele tivesse já morrido há muito).
Si tous les gars du monde... - esse poema era belo,
não o tenho comigo.

Príncipe dos Poetas, escreveu baladas,
numerosas baladas, e morreu agora
com quase noventa anos. Os seus pares na idade,
Claudel e Gide, Francis Jammes e Proust,
Jarry, Philippe, Valéry, Péguy,
Colette e Romain Rolland, mais Ana Brancovan,
condessa de Noailles, haviam já morrido,
ora velhos, ora de estarem vivos, ou de angústia,
na guerra - juste guerre... ó Péguy... -,
ou na paz - que paz?... Deixemos isso.

Apenas registei. Mas não dissera ele,
na Balada da Noite, que nós contemplássemos...
O quê? Laisse penser tes sens (sabias disso,
ó Fernando Pessoa?). Éprends-toi de toi-même,
épars dans cette vie. Esparso nesta vida -
como este «príncipe» sabia coisas!

Morreu. Não de arranhado em espinhos de roseira,
como convém a Rilkes. Só de velho,
e um pouco de esquecido, esparso, épris
de soi-même. As histórias literárias
- sem o relerem, ou não seriam histórias literárias -
dar-lhe-ão cada vez menos linhas,
resumidas das linhas das outras.
E eu, que sou poeta - ó Príncipe! - trai-te,
como se com método e com ficha, registando apenas,
no apêndice de uma delas, que morreste.


* * *

Bom dia! Billie Holiday- All of Me


Que bom acordar com a voz de Billie Holiday! Hoje foi o que me aconteceu: alguém pôs esta música para mim...


“Um sonho que sonhes sozinho é apenas um sonho. Um sonho que sonhes em conjunto com outros é realidade", dizia John Lennon, um dos inesquecíveis beatles...





sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Se todas as pessoas do mundo quisessem.... E o azul!


Paul Klee, "Azul"

Burne-Jones, "O espelho de Vénus"

“Si toutes les filles du monde
Voulaient se donner la main
Tout autour de la mer
Elles pourraient faire une ronde...

Se todas as mulheres do mundo
Quisessem dar as mãos
Em redor do mar todo
Poderiam fazer uma roda

"Meninas de roda", Hans Thomas

"Dança", Anne-François- Louis Janmot (1814-1892)

(…)

Si tous les gars du monde
Voulaient bien être marin
Ils feraient avec leurs barques
Un joli pont sur Londres...


Heitor dos Prazeres, "Roda de Samba"

Se todos os homens do mundo
Quisessem ser marinheiros
Com os seus barcos
Fariam linda ponte, em Londres...

(…)
Alors on pourrait faire
Une ronde autour du monde
Si tous les gens du monde
Voulaient se donner la main…"


Dança de Roda, Alberto da Veiga Guignard (1954)

(…)
Então, poderíamos fazer
uma roda à volta do mundo
- se todas as pessoas do mundo
quisessem dar as mãos...


Paul Fort

Jules Jean Paul Fort, nasce em Reims (na região de Marne) no dia 1 de Fevereiro de 1872 et morre em 20 de Abril de 1960, em Montlhéry (no Essonne). 

Em 1878, o pai de Paul Fort vai com a família para Paris, e ele estuda no Liceu Louis-le-Grand onde conhece André Gide e Pierre Louÿs, ambos alunos da chamada "Escola" alsaciana.

É um poeta e um dramaturgo francês, autor de uma vasta obra poética, a maior parte reunida nas "Ballades françaises". Lirismo misto de simplicidade e de simbolismo.  Reunia-se com o grupo do Café Voltaire e da "Closerie des Lilas", poetas, músicos e pintores...

"Closerie des Lilas"

Ficou famoso o poema "Ronde autour du monde" que fala da possibilidade (remota? inverosímil? quem o sabe?) de "criar uma roda à volta do mar", do mundo, se todas as pessoas quisessem unir as mãos...

Paul Klee, "Margem"

Em 1956, Christian-Jacque (com guião de Henri-Georges Clouzot) realiza um filme cheio de bons sentimentos, baseado na solidariedade de um grupo de marinheiros durante a Guerra. 

Claude Monet, Glicínias

O filme vai ter sucesso, porque no fundo todo o homem anseia por ser capaz de dar algo de si! Quem não quereria acordar com o azul deste quadro de Claude Monet e com as suas "Glicínias"? Com a paz de esírito de ter realizado uma boa acção? De dar dado a mão a outro homem...

Sim, seria bom, mas na maior parte dos casos não consegue sair das limitações do egocentrismo, da inveja, de susceptibilidades várias em relação ao seu vizinho, ao seu "próximo"...


Este filme "redime" o homem? Não sei, não me lembro. E a poesia de Paul Fort serviu para alguma coisa? Daremos as mãos um dia?

"Então, poderíamos fazer uma roda à volta do mundo! Se todas as pessoas do mundo quisessem dar as mãos..."

Para evocar essa solidariedade possível -e tão dificilmente encontrada,  ou realizada- muitas vezes basta dizer o 1º verso da segunda estrofe "si tous les gars du monde, voulaient être marin"... 

Mas é indispensável a 1ª estrofe: "Si toutes les filles du monde voulaient se donner la main..."

Marc Chagall, "Violinista Azul"

Os Compagnons de la Chanson musicaram e cantaram a poesia também. Vamos ouvir?








quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O filme japonês "Still the Water", de Naomi Kawase e a natureza...



Falar de um filme que fala da natureza! Da relação forte que ainda existe nalguns lugares do mundo entre o homem e a natureza-protectora-mãe...

Sim, gostaria bem de ir ver o estranho filme “Still the Water”, de Naomi Kawase - selecionado para a Palma de Ouro para a competição principal no Festival de Cannes. Encontrei um artigo sobre ela no jornal Le Monde (5 de Outubro).
(Andará por cá o filme? Só a Isabel é que pode saber....)


Fui saber mais sobre a realizadora japonesa: nascida em Nara, em 30 de Maio de 1969, Naomi Kawase (ou Naomi Sento, apelido do marido) é uma realizadora japonesa que começou por ser fotógrafa. Foi aluna do famoso fotógrafo Shuji Dodo. 

O Templo de Nara e os dois grandes Budhas


Depois, começou a fazer documentários curtos, autobiográficos, como por exemplo "Embracing" onde conta a procura do pai que a abandonou, ou "Katatsumori", história da avó que a criou.

Nara e o pagode Kofuku-ji


No filme "Still the Water" vai buscar antigas tradições da ilha Amami, onde foi completamente filmado.


Ilhas do Japão e Amami

Ilha paradisíaca “cujos habitantes são herdeiros de uma cultura onde a actividade humana não se concebe sem ser em harmonia com a natureza”, como escreve Isabelle Régnier num artigo (Le Monde, 5 de Outubro) intitulado “A mutação animal regenera a imagem da ficção”.

o Parque natural de Nara

E eles transmitiram aos seus descendentes a técnica do mergulhar nus nas águas, como os peixes.”

Flores, foto do amigo japonês Syuji Hyrai

Céu em Fukuoka-shi, Etsuko Nagamatsu 

Syuji Hyrai, mar em Fukuoka

A fauna e a flora riquíssimas, respeitadas, servem de "decor" à "passagem" quase ritual entre uma mãe Shaman e a filha adolescente. Uma adolescente-peixe que se abre para a vida.


Continua Isabelle Régnier: "Inscreve-se na linha da filosofia shintoísta japonesa, com a relação a fértil entre o homem e o animal".

em Nara, Parque das Corças

O filme deve estar a sair em Portugal, espero eu! Gostaria de o ver…
* * *
Outros filmes da mesma realizadora:
Em 1997, recebe o prémio Camera d’oro,  com o filme Susaku.

Em 2007, realiza  um filme que fala da relação homem-natureza: The Mourning Forest (Mogari no Mori)

E em 2011, sai o filme "Hanezu no tsuki"...