sábado, 7 de março de 2015

Yoko-San, a minha amiga senhora Yoko...




a escritora Murasaki Shikibu

A senhora Yoko fala um português estranho, cheio de exclamações - “ah”...”ah”- que intercala nas frases e dão um ritmo sincopado ao que ela diz.
A senhora Yoko fala do Japão, de onde partiu há quarenta anos, com um português, para viver em Portugal. Vive em Cascais e gosta de lá viver. 
E imagino-a jovem e bela num kimono de cores suaves, azul pastel ou rosa claro, à sua chegada. Como terá sido a senhora Yoko, em nova?
Vamos conversando. Voltar a viver no Japão? Ela? Não, nunca. 
- Cascais muito sossegado, diz ela.
Mas a nostalgia surge em cada palavra. Para ela, o Japão é único. Fala com amor das verduras frescas e do peixe. Dos legumes que são vendidos ao fim da tarde, a preços especiais, por toda a parte - dos mercados às lojas e super-mercados, para que, no dia seguinte, só haja legumes frescos.
- Peixe no Japão muito fresco. Verduras muito frescas.
- E a família longe?
Responde que tem notícias da família, mas há anos que lá não vai vê-los.

- Muita família, muitos irmãos. Família toda a morrer. Mal do coração, diziam dantes. Afinal, está tudo a morrer de cancro...
Depois, sorri:
- Português tem grande coração. Sabe receber o estrangeiro.
Perguntei a mim mesma se ainda será assim, desejando que ela tivesse razão e que o português continuasse a receber o estrangeiro como a recebeu a ela.
- Português muito tímido. Observa a gente. Ah...desconfiado. Mas quando conhece, é grande amigo!
Agita a cabeça, devagar, e repete:
- Grande coração.
A senhora Yoko tem um filho que não quer ir viver para o Japão. Pensei nos portugueses que amaram o Japão. 
Como Wenceslao de Moraes, por exemplo. Lembrei a chegada dos Portugueses ao Japão e a "arte Nanbam"(*). 

Portugueses no Japão
E os japoneses gostam de viver em Portugal também? Gostei disto.
- Sabe o que filho diz?  “Ir embora para quê? Tenho cá os meus amigos, gosto de cá estar!”
Ela ri, num riso doce.
- O sonho do filho é voar. Assim por cima de nós...
E aponta lá para fora, para o céu azul.
- Motores, aviões é o que ele estuda, é a especialidade do filho.
- Um dia, ele vai voar por cima de nós.
- Não sei...
Ri-se mais, fechando os olhos numa frestazinha.
A senhora Yoko  chegou a minha casa no seu BMW vermelho desportivo. Fiz um elogio ao carro.
- Lindo carro! E forte. A turbo!
Com grandes gargalhadas, ela respondeu:
- Eu também gosto. Muitos anos este carro! Muito velho... Velho e com muitas feridas!
A senhora Yoko tem 70 anos e é uma mulher pequenina, franzina mas enérgica. Jovem, no olhar e na curiosidade, jovem porque quer ainda saber tudo do mundo. 
Dá-me massagens que me fazem sentir bem. As suas mãos, cheias de força, conseguem ser sempre suaves. Faz-me lembrar as flores do Japão.

Ela vai comentando.
- O corpo das pessoas não é igual. Ah... A massagem tem de ser diferente. Corpo de mulher e corpo de homem. Mesmo mulher... é sempre diferente!
E mexe os meus dedinhos dos pés em todos os sentidos, carregando na sola, subindo pela perna. Usa uns cremes aromáticos com um bom perfume.
- Tem de ajudar a circulação, drenar a linfa...
Quando me agito, diz logo:
- Senhora está morta! Não mexe! Eu é que tenho de fazer força.
E salta para cima do sofá-cama do meu escritório, que tem um futon japonês, como colchão.
- Colchão duro, bom.
Começa a massajar-me o pescoço.
- Aqui neste sítio muito duro, muita tensão na cabeça. Parece pedra! Muitos pensamentos de certeza.
- É verdade, Yoko, muitos pensamentos...
- Corpo morto! Senhora não está assim, contraída. Não pode. Tem de relaxar, distender o corpo!
Pensei na técnica do shiatsu, massagem japonesa que já tinha experimentado...
-  É shiatsu?
Riu-se. A senhora Yoko gosta muito de se rir.
- Não é bem...
Continuamos a divagar. Ou, melhor, ela divaga e eu ouço-a.
- Iuropeu muito ignorante....
Ela pronuncia assim a palavra “europeu”.
- O português?, pergunto.
- Não. Não é só o português.
Vi que gosta dos portugueses. Defende-os.
- ... Os ”iuropeus” todos. Ah...
- Ah?
 Sem querer, usei o seu “ah”.

- Ah, repetiu ela. Gente muito ignorante das coisas do Oriente. Não sabem nada do Japão! Nem da China.
Fala muito da China. As suas reticências em relação à China de hoje são enormes.
- China foi tão grande maravilha! Ninguém se lembra disso. China é um mundo! Tantos países lá dentro, tantas raças, tantas línguas, tantos hábitos diferentes.
Tinha toda a razão, pensei. Cultura milenária, como “reduzi-la” ao que fizeram? Ou ao que se vê e ouve dela, hoje?
- Mais de 64 línguas!, continuou Yoko. Cultura tão grande, há milénios! Grande pintura, poesia, literatura...
Limitei-me a dar-lhe razão.
- Gente com muitos pensamentos!
- Sim. E o Japão também que eu sei.

- Claro. Japão muita cultura. Tudo diferente da “Iuropa”. Na "Iuropa" o que querem as pessoas? Comprar coisas, ter coisas, carros, roupas de marca. No Japão é diferente: querem é educação, educação, educação. 
Ela dizia "inducação" e eu sorri desta vez porque gostava da sua maneira de falar. 
- É o que conta no Japão! E “Iuropa” não entende nada. Muito ignorantes...
Di-lo, com indignação e impaciência, quase com pena. E eu compreendo o que ela sente.
- Não sabem nada do Japão! Só falam do “tsunami”, e comem “sushi”, porque está na moda...
- Tão bons que são os sushis e os sashimis!, não resisti. Gosto tanto! Onde é que há bons restaurantes japoneses, Yoko?
Ri-se muito.
- Não há, diz com ironia. Houve. Houve o “Aya”. O dono sabia muito do Japão. Boa comida japonesa.
- Não experimentou outros?
- Alguns. Bem melhor é comer na minha casa. Quando vou almoçar fora, volto para casa a pensar... ah...ah... é muito melhor comer aqui!
Concordei. Ela continuou:
- Comida não boa e muito cara!

Olha em redor, agora, apreciadora.
- Tantos livros! Eu gosto muito de ver livros! Era quarto?
De facto, tinha sido um quarto. O meu escritório, agora. Só tem livros e papéis e a desarrumação é imensa.
- Já foi, Yoko. Já foi um quarto. Os meus filhos protestam sempre por já não haver o quarto. Não gostam de cá dormir. Há pó...
foto de Etsuko Nagamatsu

- Ah, ah...o  pó dos livros, eu sei. Alergias, claro. É tão bom o cheiro dos livros!
- Gosta de ler, Yoko?
Olhou-me quase espantada.
- Eu? Eu não posso viver sem livros...
- Eu também não.
- Guardo todos. Aqui não se arranjam livros japoneses, mas os meus irmãos mandam. Leio até duas vezes o mesmo.
Massajava-me as costas, e continuou:
- Eu não gosto de emprestar às amigas porque não mos devolvem. Perdem, ou emprestam. Não trazem mais. Alguém os vende também...
- Não lê em português?
Nova  gargalhada sonora.
- Eu pessoa muito preguiçosa! Quarenta anos a viver cá e nunca aprendi bem a língua. Leio, com o dicionário ao lado. E caderno.
- É difícil?
- Muito difícil, muita gramática!
- E japonês...?
- Muito fácil. Mesmo para estrangeiro aprender. Gramática muito simples. Depois de conhecer caracteres, tudo muito fácil.
fácil o japonês?- quem lê este"haiku"?

Duvidei, mas não disse nada. Perguntei-lhe:
- O que gosta de ler a Yoko?
- Tantas coisas, todas diferentes...
Falei dos autores japoneses que conhecia. Daqueles de que gostava mais como Inoué ou Kawabata. 
Murasaki Shikibu

Dos “Contos de Genji”, da escritora Murasaki Shikibu. Das pinturas de Tosa Mitsuoki sobre os mesmos contos, os 'Gengi Monogatari'. 


ilustração para “Contos de Genji”, de Tosa Mitsuoki

Dos poemas curtos japoneses, os "haikais" ou "haikus". Percebi que a minha pronúncia dos nomes estava errada e, logo, os livros eram irreconhecíveis para Yoko. No entanto, ela não me disse nada, nem me corrigiu. Limitou-se a acrescentar:

- Leio histórias. Leio o que gosto. Posso ler um livro porque gosto do que o autor diz. Ou porque gosto da maneira como está escrito.
Inclinou a cabeça, como se pensasse.
- Alguns leio só porque gosto das pessoas que os escreveram.
Não comentei.
- Gosto muito dos livros históricos. Foi assim que aprendi sobre a China. Cultura de milhares de anos. Sabiam tanto! O Japão também sabia...
Hocusai, Casa de Chá
- Sente nostalgia da sua terra?
- Tóquio?
Pensou um pouco:
- Não tenho saudades. Vivi muitos anos em Tóquio e estava farta da agitação e do barulho.
Riu-se.
- Quando cheguei a Cascais pareceu-me o paraíso perdido! Tinha mar. Tinha flores. Tinha silêncio.

Imaginei-a, apaixonada, a olhar para a baía de Cascais. Ela continuou:
- As casinhas, o mar, o céu limpo. Poucos carros. Tudo muito sossegado...
Cascais já não é assim, mas não falámos disso.
- Bom clima, acrescentou. Tóquio muito frio no Inverno e muito quente no Verão. De Verão nem se pode ir à rua. Só se está bem em casa. Quem pode, liga o ar condicionado. Quem não pode...
Encolheu os ombros e continuou:
- Cascais bom clima. Quando cheguei, gostei muito.
Calou-se e voltou a massajar-me com força.
- Tive filho aqui. Gosto de estar aqui... Filho também gosta.
Não quis perguntar nada da vida dela.

Nessa tarde, enquanto esperava o elevador, abriu a malinha e disse:
- Tenho aqui fotografia de filho. Para mostrar à minha amiga.
De um envelope tirou uma fotografia a cores onde sorria um rosto redondo, de olhos um pouco oblíquos, ao lado de uma bela jovem.
- Namorada?
- Não, riu-se ela. Ele não quer namorada. Quer aviões!
Fez uns ruídos com a boca, como se falasse muito depressa.
- Diz que elas falam muito...

Quando o elevador desceu, ainda ouvi a senhora Yoko a rir-se.

(*) "Namban" vem de Namban-Jin, ou “bárbaros do sul” como os portugueses (chegados em 1534, e, depois, os outros ocidentais) foram chamados. Arte "namban" é a que se inspira nesses motivos ligados aos portugueses.
(**) A escritora Murasaki Shikibu terá nascido entre 970 e 978 e morreu em 1014, com 41 anos.


8 comentários:

  1. Adorei esta história, este diálogo, tão bem acompanhado por belas fotos e pinturas!
    Não sei muito sobre um ou outro, mas gosto muito mais da cultura japonesa que da chinesa e hoje tenho mais simpatia pelo Japão que pela China.

    Que inveja dessas massagens!
    Está melhor dos pés? Completamente recuperada?

    Obrigada por estas bonitas histórias. Fiquei a simpatizar com a senhora Yoko :)

    Um beijinho grande e um bom domingo:)

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  2. Também adorei a história de vida, a arte e as suas fotografias.
    Tenho cá em casa alguns livros de poesia japonesa no feminino. Tenho alguns livros de arte mas é sempre para mim um mistério.
    Beijinho e parabéns pela beleza.:))

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  3. Querida amiga,

    tirou-me uma preocupação que tinha a tempo com você. Com essa senhora, sua energia pode se reequilibrar e tenha a certeza de que será sempre muito bom, te-la por perto.

    bjs muitos e continue assim, escrevendo lindos contos, coisas que são a sua cara.
    adorei, adoramos....

    bjs nossos

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  4. Estás como queres, com Yoko-San que deve ser uma excelente massagista e uma excelente pessoa. Todo um luxo. Inveja me dás!!!

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  5. Pois a minha pena é que não vejo a minha amiga Yoko-San há muitos meses, senão mais de um ano. Parei com massagens... Mas acho que vou tentar reencontrá-la! Faz-me falta realmente! Obrigada amigas dos vurdóns!
    Boa noite a todas.....

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  6. Que texto tão belo. Perco-me (ou encontro-me?) a lê-lo e a relê-lo.
    Beijinhos querida amiga

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  7. Uma historia delicada como a pintura japanese e um post cheio de armonia e sentidos como so tu sabes escrever. Sinto-me muito semelhante a Yoko-San: as razoes tu sabes ja... Buona domenica, cara amica?

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