segunda-feira, 28 de março de 2016

Arthur Rimbaud, o poeta adolescente


Botticelli, Anjos ou demónios 

Poeta maldito - como no título do livro de Paul Verlaine? Anjo caído ou demónio?
Arthur-Jean Rimbaud nasce em Charlesville, em 29 de Outubro de 1854, e morre a 10 de Novembro de 1891, em Marselha. 
Rosto de anjo, destino singular, destino poético, que permanece singular, com o fascínio eterno do poeta adolescente que em pouco mais de três anos escreve uma obra marcante. 
Stephane Mallarmé define-o, nas Divagations,  chamando-lhe um meteoro: “Com o brilho de um meteoro, aceso sem outro motivo se não a sua presença, e que desaparece sozinho, apagando-se”.
Stephane Mallarmé, por Manet
Malarmé, porém, não reconhece que "tenha tido a eficácia real que se lhe atribui sobre o simbolismo e os simbolistas".
Claude-Edmond Magny (in Arthur Rimbaud, Poètes d'Aujourd'hui) rebate: “Estranho que Mallarmé, tão clarividente, não consiga ver tudo o que, na sua própria procura poética, convergia com a de Rimbaud.” 

E recorda a influência enorme sobre os vindouros. Sobre Claudel por exemplo que, ao ler as Illuminations, escreve : o “choque revelador do que podia e devia ser a poesia verdadeira: uma recriação de tudo o que existe. Um co-nascimento do mundo e de si próprio.”

(1868-1955)

Na sua Lettre du Voyant (fins de 1870-1871), Rimbaud fala do “carácter visionário” do poeta. Sente-se um “vidente” (voyant) e define a sua “teoria” poética. 
 Paul Demeny 

A Lettre du Voyant é dirigida a Paul Demeny e é uma “lição” de literatura moderna.
Conta as visões, o sofrimento enorme até ao que ele chama o desregramento dos sentidos – quase à beira da loucura. E descreve fielmente as suas visões. O vidente “vê” o que os outros homens procuram, tacteando: o mistério que envolve o destino da raça humana e o fim para que se dirige.

Quer inventar uma nova linguagem – a única que o consegue revelar adequadamente.
Rimbaud achava, desde 1871, que  “era necessária uma língua nova” e dispunha-se a criá-la. Achava a língua ‘poética’ do século XIX insípida, monótona e incolor.
Assim, escolhe palavras raras, inventa outras, mesmo tiradas de outras línguas e ‘afrancesadas’… 

O poeta devia inventar uma poética nova. Rimbaud inclinava-se para a “anotação pura e simples” das coisas. O poeta devia abrir os sentidos à sensação. E, depois, fixar com palavras o que os sentidos tinham recebido. O seu principal cuidado seria, pois: “ver, ouvir e anotar” -  seja o que for, sem intervenção da inteligência.

"Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde. -Regrei a forma e o movimento de cada consoante e, com ritmos instintivos, gabei-me de ter criado um verbo poético capaz de todos os sentidos."  (Iluminações, 'Alquimia do Verbo, pg.131-2)

A cor das vogais? Sim, o poeta pode “sentir” a cor e deve traduzir essas suas sensações: pela cor, pelo ritmo, pelo peso –quase- as palavras são chamadas a fazer nascer nos outros a sensação que o poeta experimentou e quis transmitir. Por isso, as palavras podem ter uma cor!
Eugénio de Castro, desenho de Félix Valloton

E lembro Eugénio de Castro (4 de Março 1869- 17 de Agosto de 1944), o nosso grande poeta do Simbolismo: 

                              Félix Valoton, Mon portrait, 1885                   
“Providencialmente passaram sob os meus olhos alguns livros de simbolistas franceses recentemente publicados, de Verlaine, de Moréas, de Mallarmé (…) Esses livros ensinam-me milagrosamente a orientar as vagas e flutuantes aspirações do meu espírito e mostraram-me como a poesia portuguesa facilmente recobraria o seu vigor e a graça das suas grandes épocas, se alguém iniciasse nela um movimento idêntico ao francês, variando os ritmos  da inspiração, renovando o fatigado guarda-roupa das imagens, substituindo a expressão pelo símbolo e a expressão linear dos parnasianos pela sugestão musicalmente vaga dos simbolistas.” (in “Autobiografia de Eugénio de Castro, publicada em La Nación, Buenos Aires, 1924) 

Tudo tem de ser reinventado, desde a linguagem poética, aos sentidos duplos, metáforas, símbolos. Usa sinestesias, rimas e métricas novas, poemas em prosa ou prosa poética.A escolha das aliterações e vocabulário rico e musical. É o inebriamento dos sentidos que procura: cultivar as alucinações. É, para ele,  o tempo das drogas, dos estimulantes, dos excitantes, dos perfumes e venenos. 

Escolhe o desregramento de todos os sentidos. Desregrar as palavras e, logo, desregular os sentidos. Ou vice-versa.
O poeta segue a “Marche au Progrès”. Nada de religioso – apenas a vitória sobre a natureza. Esse futuro do homem não será religioso, mas sim materialista. 
Continua: A inteligência do homem estenderia até ao infinito as conquistas da ciência. Melhorar as condições de vida. Adquirir ‘padrões mentais’ novos.”
Jan Vermeer e a ciência: O Astrónomo e o Geógrafo

O  Poeta vai ser, para os outros, “o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito.” Porque reinventa o mundo, dolorosamente, destruindo antes tudo o que tinha sido esse mundo de 'normalidade' que ele recusa. Por isso,  incompreendido. 
Magritte
O sentido de muitos dos seus versos e metáforas é ainda hoje discutido, ambíguo para alguns. Porque havia um 'código' para os entendidos de que só ele tinha a'chave' de que fala muitas vezes. Mas a Arte é ambígua, não é? Por que querer desvendar o código do Poeta?
Poeta sem esperança, sem caridade para si, nem para os outros, o poeta de "Estação no Inferno". 
 Vrubel, Demónio sentado

“(...) mais do que a falta da esperança e da caridade o seu pecado maior é a impaciência.” - escreve Claude-Edmond Magny.  “A impaciência que é, aliás, um pecado infantil, a não resignação ao tempo das crianças."
Em muitas coisas, Rimbaud permanece uma criança insatisfeita, que se aborrece, que gostaria de ser entretida.
Jan Sanders- Hermessen, Vaidade
anjo ‘satânico’?
Adolescente ‘satânico’ e mal-amado? Anjo caído? Um adolescente, sempre “como Satã o era”, diz Magny. 
“São muitos os textos do Talmude em que Satã é chamado 'o Adolescente'. Um adolescente incapaz de chegar à idade adulta, sem deixar pelo caminho a parte melhor de si, a parte mais grave (pesada?) dos seus dons.” (**  pgs. 49-50)

Rimbaud à procura do sentido da vida? à procura da Idade de Ouro perdida? Da sua juventude e vida perdidas por "delicadeza"? Como diz na "Chanson de la plus haute tour":
The falling angel (1849-50), de Karl Brullov


"Oisive jeunesse
à tout asservie
pour délicatesse
j’ai perdu ma vie.
Ah! Que le temps vienne
Où les coeurs s’eprennent!" 

Perdeu a vida, e agora é tarde. Perdeu-a por aceitar todas as sugestões e influências alheias, par délicatesse. Submete-se dócilmente ao que a vida lhe trazia –mas é a vida que perde.

Bannières de Mai 
 "Je veux bien que les saisons m’ usent.
A toi, Nature, je me rends;
Et ma faim et toute ma soif.
Et, s’il te plait, nourris, abreuve.
Rien de rien ne m’ illusione."

Sente-se gasto. Desiludiu-se. Aceita que as 'estações' o gastem e rende-se à Natureza. O Outono da vida chegou cedo para ele. Há como uma entrega a um certo doce “fatalismo”, ao aborrecimento que sempre o tentou e amou. Não vale a pena resistir…

"Abomino todos os modos de vida", queixa-se.

"-Ai! estou tão sozinho que ofereço a qualquer ídolo as minhas orações." (pg.112)
Antonio de Pereda, A Vaidade (1611-1678)

 Que acredita em poucas coisas. Mas acredita na 'ciência', porque nada é vão.
Ao "vaidades das vaidades, tudo é  vaidade" do Eclesiastes, responde: 
 A Ciência é a resposta! Pela Ciência e em frente!, clama.
"O trabalho humano! explosão que ilumina de quando em quando o meu abismo.
Homens e fábricas, Laurence Lowry

Nada é vaidade; pela ciência, marchar", grita o Eclesiastes moderno, isto é: Toda a Gente. E no entanto o cadáver dos maus e dos vadios caem em cima do coração dos outros... Ah! depressa, depressa, depressa um pouco; lá longe, além da noite, as recompensas futuras...eternas... fugir-nos-ão?..."
Haren Steenwijck, "Vanitas"

“Jadis je me souviens bien, ma vie était un festin où s’ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient."
Agora:

"Está gasta, a minha vida, É andar, enganemos, vagabundeemos, ó piedade! Existiremos em diversão perpétua, sonhando amores monstruosos e universos fantásticos, chorando-nos e discutindo a aparência das coisas, saltimbanco, pedinte, artista, bandido -padre!" (pg.145-46)
Esperance, de Puvis de Chavanne ,1872

"Un soir j’ai assis la Beauté sur mes genoux. –Et je l’ai trouvée amère.  –Et je l’ai injuriée."

Como não pensar na "Beleza" fria e indiferente de Baudelaire?
Mary Cassatt

"Je suis belle ô mortels! 
Comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun
s’est meurtri tour à tour, 
est fait pour inspirer au poète un amour."

***
O espírito do poeta erra entre a pureza das 'ondinas' e da água fina, do céu azul, das transgressões várias, entre a procura do Belo e a libertação dos sentidos, das errâncias e dos exílios... Partir, não partir? O que é verdade, nele?
"L’esprit
"Eternelles Ondines,
Divisez l’eau fine.
Venús, soeur de l’azur,
Emeus le flot pur."
Magritte, 'Chamada do alto'

No poema 'Mau Sangue', escreve:
"Eis-me na praia armoricana. Que as cidades cintilem ao anoitecer. A minha jornada está feita: deixo a Europa. O ar do oceano queimará meus pulmões; ignotos climas me bronzearão. 
Nadar, pisar erva, caçar, fumar, fumar muito; beber licores abrasivos (...) Regressarei com com nervos de ferro, a pele curtida, o olhar irado. (...) terei ouro: serei indolente e brutal. (...) Agora sou um maldito, tenho horror à pátria. O melhor ainda é uma sesta bem bêbada na praia." (tradução de Mário Cesariny, pg. 111)
E - paradoxo!-  logo acrescenta: 
"Ninguém parte. - Voltemos aos mesmos caminhos, carreguemos outra vez com os meus vícios, os vícios que, a meu lado, plantaram raízes de dor."
Adeus: 
"Já o Outono! - Mas porque desejar um sol eterno, se partimos à descoberta da claridade divina - longe daqueles que florescem e morrem com as estações." 
Myrna Landau, claridade azul?

A procura infindável, numa estação luminosa, mas breve, através da Poesia, que não durou mais do que três anos!
Ah! como o espírito do(s) Poeta(s) é inquieto, inseguro - e afasta para longe a felicidade! O que terá sido a vida de Rimbaud afinal? 
A busca  da Idade de Ouro?
"Perdeu-se. Buscai.
Quem? A idade de Ouro."
A expectativa das recompensas futuras...eternas? 
Marisa Volonterio, Luar
"Ah! depressa (...) lá longe, além da noite, as recompensas futuras...eternas... fugir-nos-ão?"

E a eternidade, de que fala na 'Alquimia do Verbo', encontrou-a? 
"Elle est retrouvée!
Qui? l'éternité.
C'est la mer mêlée
au soleil." 

Mas a eternidade é o fim da vida...
~
NOTAS:
(*) Eugénio de Castro nasce em 4 de Março 1869 e morre em 17 de Agosto de 1944.

(**) Introdução de Charles-Edmond Magny, à obra “Arthur Rimbaud” (Pierre Seghers Editeur -Colection poètes d’aujourd’hui)

(***) Introdução de Antoine Adam, Oeuvres Complètes, Pléiade. 

Segui a tradução do poeta Mário Cesariny a "Iluminações/ Uma cerveja no inferno", Edições Cor, 1972

6 comentários:

  1. Fantástico post! Fico sempre maravilhada com a forma como consegue intercalar o texto com as belíssimas imagens tão diversas. Muita pesquisa e muito conhecimento.

    Gostei muito desse trabalho da Myra Landau.

    Um beijinho grande:)

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  2. Obrigada, querida Isabel! Dá trabalho mas gosto tanto que não me importo de ir procurar mais. Não quero desistir nem do conhecimento nem da procura! Um beijo muito amigo, minha fiel leitora!

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  3. Querida Maria João, confesso de já li mais sobre Rimbaud do que dele próprio. Em ambos os casos é sempre fascinante. Como fascinante é o que a Maria João escreveu e como escreveu e ilustrou.
    Uma vénia...))
    Beijinhos.:))

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    1. Cláudia, tente encontrar a tradução de Mário Cesariny, uma bela tradução: "Uma cerveja no Inferno" (há uma razão para escrever 'cerveja' e não 'estação' - ele explica). Beijinhos

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  4. O artista que não é de certa maneira um "voyant", não tem interesse. Tudo o que é repetição, embora possa ser muito bonito, não é arte.
    Na poesia, tem que se descobrir uma forma de sentir única. Na pintura, na música, a mesma coisa.

    " Ciel! Amour! Liberté! Quel rêve,ô pauvre Folle!"... ( Ophélie)

    Um bom trabalho, estás em forma!És estupenda!

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  5. Gostei muito. Parabéns! Está um belo trabalho

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