quinta-feira, 26 de maio de 2016

Coisas que dizia o Principezinho...




“Era uma vez um principezinho que habitava num planeta pouco maior do que ele e que tinha necessidade de encontrar um amigo...", escreve Antoine de Saint-Exupéry. Um piloto desce dum avião e vê-o. E fala com ele. E ele conta... Assim começa a maravilhosa história do pequeno príncipe que não queria estar sozinho!
Um dia esse menino entrou no planeta Terra sem perceber nada do que via à sua volta, porque era tudo diferente do seu minúsculo planeta. 
Vagueou, esperou, viu. Mas ele queria era encontar um amigo!
Um belo dia, no alto de uma montanha, a ver se alguém lhe falava, gritou: 
"-Bom dia! 
E o eco respondeu: 
-Bom dia... Bom dia...
-Quem és?, perguntou o Principezinho.
-Quem és ... quem és ....quem és? ...respondeu o eco.
-Sejam meus amigos. Estou sozinho...
- Estou sozinho... estou sozinho... estou sozinho...respondeu o eco."

O Principezinho achou estranho mas não desistiu e continuou à procura de um amigo. Foi andando e andando. 

E viu uma rosa e viu uma serpente. E, finalmente, encontrou uma raposa! Um ser muito especial que lhe ensinou muitas coisas...

Quis falar com ela:
"-Quem és? disse o Principezinho. És bem bonita...
-Sou uma raposa, disse a raposa.
-Vem brincar comigo, propôs-lhe o Principezinho. Estou tão triste...
- Não posso jogar contigo -disse a raposa- porque não fui cativada.
-Ah. Desculpa.
Mas depois de pensar, perguntou:
- O que é ser cativado?
...
-Eu ando à procura de amigos. O que é "cativar"?
- É uma coisa um pouco esquecida, sem valor hoje, disse a raposa. Significa "criar laços".
- Criar laços?
- Claro, disse a raposa. Para mim és apenas um rapazinho igual a cem mil outros rapazinhos. E não tenho necessidade de ti. E tu também não precisas de mim. Sou uma raposa semelhante a cem mil raposas. Mas se me "cativares", precisaremos um do outro. Serei para ti única no mundo... 
Para mim, tu vais ser único em todo o mundo. Para ti eu vou ser única em todo o mundo.
- Começo a compreender, disse o Principezinho."

E falaram, falaram. E ficaram amigos um do outro. E sentiram necessidade um do outro. E quando, um dia, o Principezinho teve de partir, a raposa disse-lhe:
"- Adeus. Tenho um segredo. O meu segredo é simples, muito simples: só com o coração é que podemos entender as coisas tal como são; o essencial é invisível aos olhos.”

Todos os adultos foram um dia crianças…mas são poucos os que se lembram disso”, escreve Saint-Exupéry. 
Saint-Exupéry um dia desaparece num voo sobre o Atlântico. Foi o seu último voo. 
Ele, que continuara sempre dentro uma criança, foi com certeza ter com o Principezinho! Ele tinha razão!


"Nunca devemos atraiçoar a criança que fomos", afirmava também o escritor Georges Bernanos. Porque a criança que continua a viver dentro de nós, ainda "vê" tudo com o coração. E não podemos atraiçoar o  coração...nem deixar para trás as pessoas que cativarmos: os amigos!
E a verdade é que "só com o coração é que podemos entender as coisas tal como elas são"...
Sejam elas qual forem!


sábado, 21 de maio de 2016

Miguel de Cervantes: passam 400 anos sobre a sua morte



Confesso que foram duas pessoas que me levaram a ir buscar o meu Dom Quixote, à estante! Uma delas foi a Carlota, jovem prima do Manuel, e grande amiga também, e a minha amiga María do Mar que muito poderia escrever sobre ele, espanhola como é, porque tem as duas nacionalidades. 
Cervantes, pintura de Juan de Jaurégui

Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, no dia 29 de Setembro de 1547 e morreu em 23 (22?) de Abril de 1616, em Madrid.

Lamentavam que não houvesse a mesma preocupação em falar de Miguel de Cervantes, enquanto se 'festeja', com grande pompa por toda a parte, Shakespeare.
Achei que tinham toda a razão e decidi pôr-me ao trabalho! Porque dá trabalho...

Da biografia – tirando os livros que escreveu – pouco se sabe: “soldado, novelista, poeta e dramaturgo espanhol”, é, no entanto, considerado o maior expoente da Literatura Espanhola de todos os tempos e está entre os maiores escritores da Literatura mundial. 
E claro que lembro o nosso Camões, de igual valor, muito falado e tão pouco conhecido!

Cervantes admirava Camões que nasceu uns vinte e tal anos antes dele. Admira-o não só pela sua obra como pela vida que, em parte, se assemelha à sua: soldados e escritores ambos. Homens de acção os dois, homens corajosos, que arriscaram a vida e que pouca 'paga' tiveram da parte dos seus Reis.
Cervantes, escritor, foi um soldado e participou na batalha de Lepanto (1571) em que a Sereníssima República de Veneza pede ajuda à 'cristandade' para lutar contra a invasão dos Turcos Otomanos, de Ali-Pachá. 
E dessa participação muito se orgulhava. E na batalha perdeu a mão. Um escritor soldado? Ou um soldado, que se dedicou sempre à leitura e à escrita, e que um dia foi um escritor genial?
Há ligações de Cervantes a Portugal. De facto, Cervantes entra em Portugal, com Filipe II, em 1581. 
Camões tinha morrido um ano antes. Quando Cervantes cá chegou, tinha já vivido muito, tinha 33 anos, talvez tivesse vindo procurar uma ‘recompensa’ pelos seu serviço de soldado prestados à coroa.
E Camões? Camões nasce por volta de 1524 possivelmente em Lisboa e morre no dia 10 de Junho de 1580 (ou 1579?). Muita incerteza existe sobre a vida do grande poeta. Família de pequena fidalguia. 
Envolvido em amores nobres e plebeus, vida turbulenta e de boémia. Terá ido para África, depois de um amor mal sucedido. Alistado como militar, numa refrega, perde um olho. Regresso a Portugal. Novos problemas. E prisão. Perdoado, vai para o Oriente. De novo preso, adversidades várias.
Os Lusíadas, de Camões (1572)

Os Lusíadas saem em 1572, parece que ainda os leu ao Rei D. Sebastião. Mas não será lenda? Há uma litografia de 1873 que assim o representa.
Leu, com certeza, Os Lusíadas aos monges que o terão protegido. Assim o representou António Carneiro.

Camões a ler Os Lusíadas, António Carneiro

Cervantes, como Camões, esteve preso, perdeu uma das mãos numa batalha e Camões perdeu um dos olhos. Em Portugal, espera obter do Rei espanhol Filipe II (Filipe I de Portugal) um lugar, uma ajuda monetária - pela sua dedicação nas guerras do Mediterrâneo, e pelo muito que sofreu em batalhas e prisões… 
Paolo Veronese, Batalha de Lepanto

Terá conseguido a recompensa esperada? Não contam. No entanto, vai ser em Portugal que encontra a mulher que amou e é aqui que vai começar a escrever!

Conhecido sobretudo a partir do seu romance, Don Quijote de la Mancha, que, segundo muitos críticos, é “a primeira obra do romance moderno”, foi traduzido e editado em inúmeras línguas, quase igualando a Bíblia!




Para português, traduziu-o Mestre Aquilino Ribeiro. Sai, na Bertrand Editora, com ilustrações de Lima de Freitas.
Chamaram a Cervantes “Principe de los ingenios”. Aliás, n' O Don Quijote que sai em 1605, na primeira edição, está escrito na capa: “El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha” - que foi publicado, por Francisco de Robles, livreiro, tal como, depois, as Novelas Ejemplares.
Quantas vezes ouvimos a palavra quixotesco, ou "és um Dom Quixote", ou "lutar contra moinhos de vento "– quantas expressões do nosso dia a dia ligadas à história do cavaleiro da triste figura! 
Triste figura,  ingénuo e bom, com o seu ideal da utopia total: em que se deveria escolher o bem, o justo, o verdadeiro dentro de nós. E depois 'impô-lo' na vida, com os outros!
Enorme é o fascínio que exerceu - e exerce- no nosso imaginário esse romance, essas aventuras e desventuras intermináveis, tantas vezes sem saída! 
Dom Quixote, de Picasso

Comédia? Sátira? Burlesco? Crítica à literatura de cavalaria? Infinitas serão as interpretações e cada um de nós terá a sua.  Como dizia José Régio (cito de memória), 'perante uma obra de arte, o leitor, espectador passará pelo seu próprio “filtro” essa mesma obra e será diversamente “tocado” por ela, conforme a sua própria vivência, cultura, costumes'. 

Pouco importam as respostas que (nos) podem servir. É no romance que tudo está.
Como pouco importa o que nos leva a saber que Camões é um génio e a gostar dele!                                 

 "Ó caminho da vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança."

Pobre Camões, tão pouco tido em apreço pelos governantes, acabando, pobre e deserdado,  de desilusão em desilusão, à porta do Convento de São Domingos.
“No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho na terra tão pequeno?” (1)

Dom Quixote,  defensor dos humilhados e ofendidos, ingénuo e puro como uma criança, vai ao ponto de inventar cada dia que passa, à procurando do bem, contra o mesmo "Céu sereno" de que fala Camões... 
Alonso Quijano el Bueno, ou melhor, Don Quijote, e o seu escudeiro Sancho Panza atravessam a Mancha, sem meta: sem saber bem como vão, por onde vão, aonde vão e o que vão encontrar. 

No meu livro Don Quijote, vejo as reproduções das belas gravuras que lhe dedicou Gustave Doré: tanta delicadeza, tanto espanto naquela figura!
Gustave Doré

De lança em punho, montado no fiel “Rocinante”, a cair de velho, o Cavaleiro, arremete contra os moinhos de vento - que tantos há na mancha!- para ele imaginários gigantes guerreiros, contra o Bem que ele defende! 
Atrás, no burrinho, Sancho, mais sensato e medroso, procura ser o contrapeso da balança daquele apaixonado homem sem siso. E vai avisando o cavaleiro dos perigos - e levantando-o do chão quando cai.

A Dulcineia de Toboso é a bela donzela que Dom Quixote imagina, pura e bela? Que importa se ela o não é. Ele “vê-a” assim! 
A sua necessidade de amar -no respeito dos valores de cavalaria ligados a esse sentimento- levam a que conte apenas o amor em si, independentemente do “objecto” desse amor. Porque ser poeta:
“É vaguear em sonhos p’los espaços,
Sem que o nosso ideal encontre a meta!
Querer ter a magia dum profeta,
Ter forças p’ra vencer nossos fracassos.”

No início do capítulo VIII, diz o autor o que vai contar: Do bom sucesso que o valoroso Dom Quixote teve na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento”. Os tais moinhos contra os quais luta convencido que são gigantes inimigos que ele tem de vencer, como  'cavaleiro andante' que é.
'Don Quijote',  filme de Kozintsev
O Cavaleiro Andante, o Vagabundo, o Deserdado, como no poema de Antero, ele, Don Quijote de la Mancha, sem protecção de ninguém e entregue à sua loucura, é um visionário, correndo terras e galgando espaços de luta, montado no seu cavalo, e arriscando a vida pelo Bem!
Gustave Doré

Contra tudo e todos, na sua sede de justiça, por desertos, por sóis, por noite escura, na defesa dos fracos e das mulheres, na ânsia de aventuras e de feitos nobres, à procura, pobre ‘cavaleiro do Graal’, como Antero, da felicidade e do encantamento que simboliza o “palácio da ventura”…
“Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante

O palácio encantado da Ventura.”

Ou como o próprio Cervantes escreveu, no seu romance:
“Marinero soy de amor,
Y en su piélago profundo
Navego sin esperanza
De llegar a puerto alguno.

Seguindo voy a una estrella
Que desde lejos descubro~
Más bella y resplandeciente

Ya no sé adonde me guia,
Y así, navego confuso,
El alma a mirarla atenta,
Cuidadosa y com descuido.”

E eis que chega “exausto e vacilante” – “quebrada a espada já, rota a armadura", ao palácio encantado da ventura. 
Pobre Dom Quixote! Muitos fracassos, desgostos e aflições o esperam na estrada estreita da sua procura.
"Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura….


Como o soneto de Antero de Quental - que prossegue até ao final, num crescendo de ilusão e ansiedade, seguidos de desespero e do vazio da solidão. 

O mesmo que terá sentido, não só Antero, como Cervantes e, também, o grande Camões quando pergunta: "Onde pode acolher-se um fraco humano/ Onde terá segura a curta vida?"

                     "Eu sou o Vagabundo, o Deserdado,
abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro com fragor…
E dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!"


Dom Quixote e o Cinema:

O cinema, inevitavelmente, interessou-se por estas extraordinárias aventuras tão "visuais". 
O primeiro é o filme do realizador austríaco G. W. Pabst (1933), com o actor Feodor Chaliapin.
Em 1947, Rafael Gil, espanhol, realiza Don Quijote, com Fernando Rey.
Mais tarde, o russo (de Kiev) Grigori Kozintsev realizou, em 1957, um belo filme:  Don Quixote
Lembro-me de o ter visto, na televisão, quando era director de programas uma pessoa idónea e culta, Carlos Miguel de Araújo, um amigo que quero homenagear aqui. 
(São deste filme a maioria das imagens que uso).
Anos mais tarde, Orson Welles, apaixonado pela Espanha,  também tentou o seu Dom Quixote - situado, porém, na Espanha de finais de 50. Até 1972 trabalha nele, mas o filme ficou inacabado devido à sua morte em 1885. Jesus Franco acaba-o e o filme saiu em 1992. Não o vi.