quarta-feira, 12 de outubro de 2016

E OS AMIGOS PERGUNTARAM: "QUEM ROUBOU AS AZEITONAS?"


Há sempre histórias aqui por casa. Sobretudo na varanda. O Ratinho Poeta e o Ouricinho são  imprevisíveis e a vida deles é aventurosa.

Desta vez foi o ‘Caso das azeitonas desaparecidas’ que os agitou. Mas, antes, assisti a uma conversa filosófica sobre tantas coisas importantes!
Estavam os dois encostados à vidraça da varanda. Fiquei a vê-los, sentada no sofá de couro, com os pés em cima do banquinho de veludo amarelo-dourado.
- Sinto-me sempre angustiado, disse o Ratinho.

- Porquê?, pergunta o Ouricinho.
- Sinto-me sufocado com a vida que vivemos. Pesa-me todos os dias.
- Mas porquê, hoje, especialmente?
- Não é de hoje. É uma angústia que eu diria existencial. E que se agudiza com o que se passa no mundo. A falta de esperança…
- Tu acreditas na esperança! E na utopia! Ensinaste-me isso, não te lembras?
- É tudo demasiado complexo. Estou farto de viver num mundo de paradoxos!
- Paradoxos quais?
Continuaram a conversa a olhar para a varanda.
- O que é o bem? O que é mal? Por que fazes o mal? Fazes o bem porque queres, porque o procuras, ou porque é natural em ti? E tem o mesmo valor? E quem sofre…por que sofre?
- Não entendo o que queres dizer. São dúvidas!
O Ratinho ia dizendo, sem o ouvir:
- E os que fazem o mal, têm consciência disso? Ou fazem-no sem querer? Por outro lado, há quem faça o bem, mas sabem o que estão a fazer?
- Isso que importa? Fazem o bem e basta!
- Não é tão simples. O mal é banal, dizem alguns. E isso desculpa tudo? Vês o que se passa no Haitï? 
- Ouvi falar disso da banalidade do mal. Não pode ser desculpado o mal! E o Haïti? Temos que intervir, não achas?
- E o que se mata hoje por esse mundo? E quem se rala? Há os que mandam e os que obedecem, os que têm opiniões e os que as não podem ter, os que afirmam e os que ouvem apenas e têm de se calar.
- Os que mandam não se calam. Foi sempre assim na história. Mas sempre ouvi dizer que se “a palavra é de prata, o silêncio é de oiro!”
E o Ouricinho riu-se, contente com esta descoberta. 
- Dizem os sábios chineses...
O Ratinho nem o ouviu. Acho que vê televisão a mais. Devia antes  ir brincar com o Ambrósio e o Leãozinho como faz o Ouricinho.

E pensa muito! Pensar dá cabo da alma!” Bem, mas o Ratinho é poeta, bem sei. E é filósofo
- Por que sofrem os inocentes? Era o Ouricinho que se indignava . Os pequenos, as crianças, atacadas, bombardeadas, afogadas…Não devia ser possível! O que podemos fazer nós?
- Não podemos fazer nada. Nem conseguimos compreender.
- Nada, mesmo? Nem protestar? Eu quero protestar!
- Ah, isso sim. Eu não compreendo nem quero compreender.
- Basta não querer?
- Tem de se tentar fazer!
O Ouricinho olhou para ele, triste, impotente.
- Como se faz? Por onde se começa?
- Não desanimes! Sabes o que dizia o Baudelaire? “Quanto mais se quer, melhor se quer.”
O Ouricinho estava desconfiado. Coisas de poetas!
- “Melhor se quer”? Ele que foi tão desgraçado! Viste como viveu e como morreu?
O Ouricinho pegou num papel e nas canetas de feltro e pôs- se a escrever. 
- Oh, Jana, Tira lá uma fotografia. 
E pôs-se, com o pequeno cartaz que desenhara, ao lado do Ratinho que, parado, nem nos viu. Eu tirei a fotografia.
- Era um génio… temos de aceitar.
- Agora és fatalista? Temos que aceitar?
- Não! Só queria dizer que ele viveu a vida que tinha de viver. O que viveu e como viveu é que fez dele o poeta que foi.
 - Tu lá sabes. És poeta… 
O Ratinho ergueu as sobrancelhas, sonhador. Talvez imaginasse o seu futuro de poeta. Seria um dia um grande poeta? Talvez imaginasse o sofrimento do poeta. Talvez o assustasse a ideia. “Terei mesmo de sofrer?”

O Ouricinho já se tinha ido embora, a mostrar o cartaz aos outros amigos. 
- A  pensar em quê, Ratinho?, perguntei
- Oh! Há tanto para pensar! Os poetas. Não sei se quero ser poeta! Assusta-me o sofrimento. Os poetas têm sempre de sofrer como o Baudelaire ou o Verlaine e o Rimbaud?

- Um pouco de sensibilidade a mais…
Não sabia o que lhe havia de dizer. Ele continuou, alheio a tudo.
- Bem não interessa, a verdade é que também sofrem os que não são poetas!
Felizmente o Ouricinho apareceu nesse momento, agarrado à mão da gatinha japonesa. Vinha indignado e já se esquecera do Haïti. E, foi assim que voltámos às azeitonas…
- Roubaram as azeitonas da varanda! Duas! Eram dezasseis que eu contei-as quando ainda eram pequeninas!
- O quê? As azeitonas?
E o Ratinho esqueceu-se do sofrimento dos poetas e foi ter com eles. Foram para a varanda investigar. De facto, faltavam algumas azeitonas.
-Duas! disse o Ouricinho. Pelo menos, duas!

Quem as iria comer? Eram sempre tão amargas! Este ano, logo na Primavera, apareceram as primeiras florinhas brancas, na oliveira. De repente eram as azeitonas verdes e pequeninas e, no fim do Verão, estavam grandes, roxas e bem maduras! E bonitas que elas estavam!


- Foram os pássaros, tenho a certeza! O Ouricinho estava zangado.
- Bem, não se deve acusar ninguém sem provas…
Tinha razão o Ratinho. Vi que o meu aluno tinha aprendido alguma coisa com a professora! E fiquei lisonjeada...
- Ou então foi o Manuel! Eu vi duas azeitonas na pedra da lareira…, insistia o Ouricinho.
A Gatinha foi chamar o Leão. Ele ouvia, espantado, a discussão.
- Azeitonas?! Azedas! Se fossem uvas doces...
O Leãozinho  nem gostava de azeitonas!
- Não tens provas! Perguntaste-lhe?, continuou o Ratinho.
- Não. Ele está sempre distraído, não nos liga!
- Isso não prova nada! Pelo contrário -quer lá ele saber das azeitonas!
Era o Leãozinho, a meter-se na conversa. Todos tinham uma opinião. De repente, a voz do Ratinho:

Olha onde foram parar as nossas azeitonas!
 E lá estavam elas, como duas contas pretas, agora já secas, em cima da pedra da lareira.
- Quem terá sido?, e o Ouricinho estava irritado. Foram os passarinhos, não os vês todos contentes?
Estabeleceu-se um diálogo um pouco agressivo entre o Ouricinho e os passarinhos. Até que o cãozinho disse que não.
- Não fomos nós!
- Bem...Alguém foi!
Sim, alguém tinha sido. Quem sabe se não fui eu, distraída...

Deixei-os ficar na discussão sobre quem teria roubado as azeitonas. Pelo menos estavam entretidos e passara a angústia do Ratinho Poeta!
"Até quando?", pensei.
Entretanto a chuva começara a cair e refugiaram-se na janela do meu quarto. Tudo acalmara. Estavam a ver a chuva!

6 comentários:

  1. O poeta é um fingidor.
    Finge tão completamente
    Que chega a fingir que é dor
    A dor que deveras sente.
    ....
    E assim nas calhas de roda
    Gira, a entreter a razão,
    Esse comboio de cordas
    Que se chama coração.

    Gostei da história das azeitonas, tão misteriosa!!

    Beijinhos

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    1. É da 2ª parte do poema que eu gosto...
      "E assim nas calhas de roda
      Gira, a entreter a razão,
      Esse comboio de cordas
      Que se chama coração."
      Mas quem é o fingidor aqui? O Ratinho? Eu? Ou o ingénuo do Ouricinho? Beijinhos

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  2. Uma forma graciosa de falar sobre questões de entendimento difícil...
    Há pessoas que não acreditam nos alertas e desafiam os elementos até um dia sucumbirem, pois, atendendo à localização, deve haver abrigos para todos.
    Beijinhos, MJ.
    ~~~~~~~~

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  3. Mais uma excelente viagem a casar ficção e realidade

    só não apareceram os caroços
    Bj

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  4. Gostei tanto!
    É um filósofo, este poeta!

    E afinal...quem levou as azeitonas? ...
    Grande produção! 16!!

    Gosto tanto das fotos deles sentadinhos à sombra e a outra sentados à janela a ver a chuva! Decididamente: são os meus heróis!

    Custa-me dizer, custa-me reconhecer, mas cada vez acredito menos na capacidade ou na vontade da PAZ, de tantos governantes.

    Um beijinho grande:)

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