domingo, 29 de janeiro de 2017

O ESCRITOR AHARON APPELFELD…E A 'SHOAH'

O dia 27 de Janeiro é considerado, mundialmente, o Dia do Holocausto, da Shoah, porque foi nesse dia que, ao ser libertado o campo de Auschwitz, em 1945, pelo Exército Vermelho, se descobriu o horror da vontade organizada da exterminação dos judeus.
Talvez pensem: “Falar dos judeus outra vez? Nunca mais se calam com os judeus?” E eu digo: falar dos judeus é para sempre, porque neles, seres humanos, foi gravado, na carne, a ferro e a fogo, o ódio de outro ser humano - apenas por ser judeu. 
A decisão de exterminação,  pela Alemanha nazi, de pessoas iguais às outras, que se tinham identificado com um país, na sua cultura, na língua, nos costumes e que, de um dia para o outro, ficam sem identidade, sem país, sem língua e são hostilizados, excluídos da sociedade, lançados em campos de extermínio e mortos. 
Alguns sobreviveram porém. E falaram. E contaram. E parece incomodar muita gente, ao ponto de terem “negado” a sua existência.
Lembro Aharon Appelfeld que tanto testemunhou da passagem pelos campos. Pensei nele porque no jornal La Stampa apareceu uma entrevista, feita por Francesca Paci (1).
E como a vida é sempre mais rica do que julgamos e cheia de acasos -ou necessidades?- faço aqui uma breve pausa.
Descobri que a entrevistadora de Appelfeld é afinal a pessoa que escreve o Posfácio do livro de que aqui falei há dias, "In fuga", de Anne Michaels (Fugitive Pieces): Francesca Romana Paci, italiana licenciada em Literatura Inglesa, escreve duas ou três páginas muito inteligentes e de grande sensibilidade que ajudam a ‘abrir’ um livro nem sempre fácil.
Recorda nele os “portadores de pedras” (um dos capítulos do livro tem esse nome), os que trazem a lembrança. Talvez pessoas como Appelfeld, Amos Oz, Voghera ou Singer – e tantos outros!- sejam os portadores de Anne Michaels.
Porque todos nós somos ‘portadores de pedras’ de um passado, de uma memória. Temos diante de nós “um reino do tamanho do globo terrestre e extenso quanto a vida” e, nele, as pedras que encontramos ao longo da passagem da vida  e de que fazemos a nossa 'cosmologia' própria.
Escreve Francesca Paci: “Existe o sentido de recomeçar e a eternamente possível ‘segunda história’, de que fala Anne Michaels: ‘há sempre um segundo momento’. O presente é sempre uma segunda história em relação ao passado e à tradição. A história de cada um de nós é a segunda história do “ser humano que é sempre um acontecimento novo”, como dizia  Athos Roussos."
O eterno voltar atrás e ser novo sempre. Mas cada um tem dentro de si “a responsabilidade moral, sempre reafirmada, e quase imperativa” de levar as suas “pedras” para recordar os que ficaram para trás.

Só morrem os que verdadeiramente esquecemos”, diz o povo. Nem todos têm o peso do ‘holocausto’ de Oz ou Appelfeld, a recordar, mas a cada um cabe esse bocadinho de memória “para não esquecer as vidas perdidas ou irrealizadas” e dar-lhes uma segunda história.
Voltemos a Aharon Appelfeld, “um dos maiores escritores do nosso tempo”, segundo The Guardian, escritor israelita que viveu na pele o Holocausto. 
 o Sydney Taylor Book Award, de literatura infantil 2016
Aharon Appelfeld era um rapazinho de 9 anos que viu a mãe ser violada e assassinada pelos soldados nazis. Tinha-se escondido e fugiu. E foi apanhado. Presos em momentos diferentes, esteve com o pai no mesmo campo de trabalho. E evadiu-se. 
Perderam-se um do outro, para só se reencontrarem em Israel, em 1960. Appelfeld era já adulto quando viu o nome  do pai numa lista de judeus recém-chegados e puderam ver-se depois de tantos anos.
Depois de inúmeras peripécias, dignas de um romance de aventuras e de horror, encontrou-se num campo de prisioneiros, no sul da Itália. Dali, seguiu com tantos outros judeus para Israel. 
Que não era a sua terra, ele judeu romeno, de língua e cultura alemãs, que se sentia alemão. 
Como tantos outros judeus que se sentiam 'assimilados' às pessoas e aos países onde viviam. Muitos desses judeus assassinados consideravam-se sem religião, e alguns até tinham sido baptizados e julgavam que eram cristãos.
kibbutz, em1938
Nova terra -onde não conhecia a língua, nem os costumes. Onde teve de se adaptar às gentes, à vida e ao clima. Ao trabalho do campo, da construção civil, num kibbutz. E adaptou-se e encontrou a sua terra. Vive há muitos anos nos arredores de Jerusalém, em Mevasseret Zion
Reuven Rubin, Jerusalém
caffetaria "Tmol Shilshom"
Tive a enorme sorte de o ter conhecido! Homem extraordinário, de cultura e de simplicidade, de sensibilidade dolorosa e de abertura ao outro. 
Nunca esqueci o olhar suave e azul, sem espanto, aberto. Encontrámo-lo na caffetaria "Tmol Shilshom" cujo nome é uma homenagem ao livro de S.Y. Agnon, "Only Yesterday (Tmol ve Shilshom, tradução: Ontem e anteontem).
Com grande sentido da realidade, Appelfeld pensa que “o anti-semitismo continua a existir e hoje está condensado no ódio a Israel”.
Jerusalém, vista dos tectos e das árvores (MJF)
 “Hoje sabe-se que os judeus não foram mortos como carneirinhos mansos, houve resistência nos campos. Uma resistência em cada momento. Nos ‘ghettos’, cada gesto à procura de comida. De ter de proteger e nutrir os filhos, dar-lhes um bocadinho de pão ou um tomate, amparar os que não tinham ninguém, era já um gesto de resistência. Sobreviver é resistir. Não precisam de ter armas, são os gestos do dia a dia. 
‘ghetto' de Lvov, 1942
É a lição do ‘ghetto’, do ‘lager’, da floresta. Nos meus livros, os protagonistas além de se baterem resistem também recuperando a cultura para lá da barbárie que viviam, lêem Tolstoi, os clássicos russos, a literatura hebraica, Martin Buber, confiam nos livros para reencontrar a vida normal fora da lotaria da morte.
Appelfeld considera que o seu testemunho de "portador de pedras" – o trabalho de memória- talvez  impeça o esquecimento de uma tragédia sem nome. O testemunho é essencial: para recordar sempre. 
Os resistentes de que falo no meu livro são homens, mulheres, crianças e velhos, uma família ligada entre si sem serem laços de sangue mas por solidariedade, e que se ajuda mutuamente. Todos têm a sua história.”
Inquisição, Pedro Berruguete, 1475
E a ‘história comum’ são os livros que leram, e que lêem, é a língua que falam, é a perseguição comum que sofrem. E sofreram: da Inquisição, aos 'pogroms'.
“A história são os livros que lêem. (…) Têm de partir do zero, da linguagem para sobreviver e reencontram a identidade hebraica. Os judeus estavam integrados na cultura alemã, a minha cidade natal, Czernowitz, tinha uma importante universidade e produzia filosofia, música e literatura. Depois, de repente, aquela cultura que era minha tirou a máscara e revelou-se a barbárie.”
Refere-se à personagem do último livro (“Les partisans”),Kamil: “O grupo de que falo é composto de intelectuais que eram assimilados à cultura nativa. Pensavam que eram europeus e foram mortos. Com a normalidade que tinham, perderam as suas origens, a literatura e a música alemã, a cultura que achavam que era a melhor do mundo. Não foram apenas apanhados de surpresa: foi um choque! A identidade hebraica é o que lhes resta quando não existe mais nada. E fica-nos para sempre com muitos problemas, inclusive psicológicos, porque, à força de ouvirmos dizer que a tua identidade está errada acabamos por acreditar nisso, e é um processo de auto-ódio.” 
A identidade é a última trincheira. Sofrem duplamente porque a capacidade de auto-crítica, de auto-ironia  dos judeus foi sempre enorme. 
Os judeus são, por natureza, hiper-críticos mas o que podia ser uma força, na Europa, foi a nossa fraqueza. O Talmud e outros textos do judaísmo são livros críticos porque procuram a verdade - e produzem livres-pensadores, alérgicos ao dogmatismo. Israel é fruto dessa experiência. É certo que entre os políticos existem dogmáticos, mas a sociedade é composta de livres-pensadores, todos se exprimem como querem, até de modo vulgar. Daí que há laicos que são super-tradicionalistas e religiosos caracterizados por grande abertura mental.”

Livres pensadores, complexos, paradoxais? Livres sobretudo, tudo é discutível, tudo se pode pôr em questão, nunca dogmáticos.

Quantas vezes  ouvia dizer em Telavive: “quando dois judeus discutem, há sempre três opiniões pelo menos.” 
Telavive, Café Segafredo (MJF)

Appelfeld não ignora que há cada vez mais judeus a fugirem da Europa. Resta-lhes o quê? Israel... 
“Onde estão hoje, na Europa? O anti-semitismo é anacrónico, odeia-se algo que já não existe. Existe, claro, mas depressa os judeus vão desaparecer da Europa. Hoje o anti-semitismo chama-se “política israelita” e tem um objectivo diferente do anterior, do anti-semitismo clássico. Quando vês que Israel tem todos os países contra, bem, então percebes que é o anti-semitismo moderno.”
O que ficará dessa memória quando morrer o último sobrevivente?, pergunta-lhe a jornalista Francesca Paci (1). 
“A memória é forte. Recebo muitas cartas de pessoas a quem os pais não contaram nada do Holocausto. Dizem que encontram, nos meus livros, uns novos pais. É comovente. É como se os livros tivessem um papel agora eterno. Não sei o que acontecerá no futuro, nem quero pensar nisso. Faço o que posso para contar a história do povo hebraico na sua complexidade e fá-lo-ei até ao último momento, é uma história universal.”
Telavive, praia na 'Promenade' (MJF)
Infelizmente, a lição que se tira do Holocausto é triste. “Aprendemos a não nos fiar em ninguém. Nem nos exércitos, nem nas ideologias. O problema da minha geração é ter deixado de usar a expressão ‘tenho a certeza’. Não temos a certeza de nada. Aprendemos a desconfiar.”
Qual o futuro de Israel? Guerra ou paz? 
Todos os pensadores abertos e liberais são pela paz. Eu queria fazer a paz com a nossa região. Mas o mundo árabe e muçulmano está atravessando um terrível processo de guerra intestina, matam-se entre eles, árabes contra árabes. Israel vive uma situação menos crítica. Há terrorismo mas não há guerra como na Síria, Sudão, Yemen. E, se quisermos falar de paz com os palestinos, então abandonemos os ‘summit-farsa’ como em Paris – com os países árabes apenas, que - em vez de falarem dos seus problemas- falam dos palestinos e dos israelitas, ausentes, ali.”
Oslo acabou com Shimon Peres?, última pergunta. 
É assim hoje, mas tudo pode mudar num momento. Bastariam que os ‘líders’ dos dois povos se sentassem prontos a fazer compromissos verdadeiros e que os seguissem. Peres era um grande. Devemos continuar a procurar o diálogo.”
A verdade é que Appelfeld escreve para recordar a ‘shoah’ mas igualmente a humanidade que lhe sobreviveu e que avança alternando entre a recusa  e a 'homenagem' ao passado. 
E Francesca Paci termina: 
"Appelfeld diz-nos pelo telefone de Jerusalém onde escreveu todos os seus romances: 'O futuro é um enigma,  a minha memória declina-se no presente'O seu último livro,  'Il partigiano Edmond', que sai em Itália, é um livro intenso, épico, que conta a resistência hebraica pedindo ao leitor que se identifique porque, 'mutatis mutandis', somos todos anti-heróis até ao momento da prova da História."

(1) Il partigiano Edmond", editora 'Guanda', o  livro de Appelfeld, fala dos últimos meses da Segunda Guerra Mundial, quando um grupo de resistentes judeus, escondidos numa floresta da Ucrânia, resistem ao exército alemão que os persegue. Chefiados por Kamil, homens mulheres e crianças organizam-se para lutar contra o frio, a fome e, sobreviver. Resistiam de vários modos -fazendo igualmente descarrilar comboios e salvando os judeus que andavam perdidos ou escondidos.



terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O LIVRO DE ANNE MICHAELS, "IN FUGA"


Há livros que nos emocionam. Pela fragilidade que sentimos ao ver o tempo correr-nos entre os dedos como a areia da praia? Ver desaparecer tudo... Prendemos uma conchinha, que se agarrou à palma da mão, e ficamos nostálgicos, olhando o mar, o barco que se afasta. 

Mar, Megi Pepeu

É a consciência do momento que passa que nos deixa vulneráveis?
"In fuga" - título da tradução italiana que comprei em Trieste- é um livro sobre tempo, memória, e História. Um livro de momentos vividos e perdidos, logo, para todo o sempre. 

Na edição italiana da Editora Giunti a capa - uma fotografia de Mark Owen- é extraordinária! Lembra todos os meninos em fuga para um sítio, em fuga de alguma coisa má, do medo, da solidão, do abandonou ou da morte.
A memória tem a função de 'salvar' os desaparecidos.  Deixar que vivam ainda um pouco mais connosco. Porque, quando não forem recordados, desaparecerão.
«Porque cada momento são dois momentos". O de viver e o de recordar? Porque se pode sempre viver outra vez?
Desaparecidos da nossa vida: barbaramente. O “porquê” dessa falta enorme persegue-nos. Persegue o pequeno Jakob, que parece fugir sempre. 
outra fotografia de Mark Owen
 Jakob que foi “arrancado” do pântano onde se escondera dos nazis que lhe mataram a família, salvo por Athos Roussos. 

Arrancado  para a vida. Era uma criança, perdida num charco pantanoso, sem saber há quantos dias. Saía à procura de comida e voltava para se esconder, fingindo-se morto, com as botas presas na lama do fundo, porque assim se sentia seguro.

E a mãe? Morta. E o pai? Morto. E Bella? É de Bella que não se consegue lembrar se morreu. É na irmã, Bella, que pensa e pensa, com angústia. O que aconteceu a Bella?
Berthe Morisot, Jeune fille au piano
Arrancado para a vida, sim, extraído da morte pela mão de Athos Roussos, um paleobotanico e arqueólogo grego, que estudava as arenárias e os fósseis de plantas, à volta do lago - um lago onde existira uma cidade submersa. 
Cidade da Idade do Ferro, em madeira petrificada, situada no Lago Biskupin (1), na Polónia, que, uma dezena de anos antes, nos anos 30, os polacos tinham começado a desenterrar. Escavações continuadas pelos cientistas dos SS Ahnenerbe alemães até 1942.
 a cidade submersa do Lago Biskupin - hoje
É um livro que dá vontade de apertar ao peito, por momentos, para entender, pelo coração, o horror.
É, pois, a história do judeu pequeno Jakob Beer salvo dos nazis quando tinha sete anos.  
Jakob é tirado do lago. Athos abraça-o e esconde-o debaixo do casacão pesado e assim atravessam a Polónia em direcção à Grécia. E não temos dúvida que foi assim, não importa como.
Athos salvou-o e leva-o até à sua ilha, Jakintos. Insufla-lhe a vida que ele não queria, enche-lhe os pulmões de ar puro que ele não quer respirar, e trata-o como uma planta, um animalzito doente, dando-lhe água e amor, um sítio onde viver, onde perder o medo e o espanto.
Berthe Morisot, Desenho "Ao piano"
E Bella? A irmã que tocava piano e tinha os cabelos negros e compridos a caírem pelas costas, bela nos seus quinze anos, e que deixava os ganchos por toda a parte, a marcarem os livros ou a segurar a partitura. É a sua angústia lembrar-se onde ficou Bella. Onde a perdeu?
“Filho do pântano, nasci das entranhas enlameadas da cidade submersa”. (pg 9-10)
A fuga constante: “Corria e caía, corria e caía. Depois o rio: tão frio que parecia cortar.”
Vê a aldeia arder sem entender o que se passa. Deitado no rio, sentia os corpos transformarem-se em espíritos.
Ergueram-se em voo, os mortos passaram por cima de mim, estranhos arcos e auréolas que ofuscavam as estrelas. As árvores dobravam-se com o peso deles”.
Tem medo. Nunca estivera sozinho na floresta. Os dias passam, tem fome, alimenta-se de raízes e, quando chega a noite, deita-se ao lado do rio.
Os ramos nus e selvagens pareciam serpentes geladas.” Enterrado,  mas seguro, com as roupas geladas como uma armadura.
“Respirava como um cão. Com os braços apertados no peito, o pescoço esticado para trás, as lágrimas colavam-se nas orelhas rastejando como insectos.”
E, de repente, a nuvem e a angústia: e Bella? Onde ficara Bella, a irmã adorada? A Belle que chorava no final dos livros, os de Romain Rolland e de Jack London que ela tanto amara. Lembrava-se dela, a ler ou a escrever.
Berthe Morisot, Jeune fille écrivant
Enquanto lia, assumia a expressão das personagens como se usasse máscaras, e esfregava o dedo no fim da página para a virar.” (pg.13)
Como dizer o indizível? Em que momento exacto perdera Bella? Athos arrancara-o ao pântano e levara-o. Athos salva-o todos os dias, Athos obriga-o a aprender uma língua nova. E outra. Obriga-o a comer, a andar, a observar.
Mas dentro, Jakob não tem nada.
Tens de ir ao fundo de ti procurar as palavras”. Jakob não era capaz, passava horas num vazio mental total. 
Bazille, Au piano
A memória recusa-se e, só em breves flashs, recorda. Vê as paredes do armário em que  estivera escondido. Ouve os gritos. Apercebe-se do drama? Passou por cima do corpo dos pais mortos? 
Mais nada. Onde desapareceu Bella? No  caminho para o rio ou será que ela fora levada antes?
Os gestos de Athos querem trazê-lo para a vida, para a cidade nova. E fala-lhe do provérbio hebraico: “Tens um livro na mão, és um peregrino às portas da cidade nova”. 
E ensina-o: o cuidado com que trata as plantas, o amor às pedras, a explicação do mundo desaparecido há milhares de anos, “um mundo que pede para ser descoberto”
De facto, no Lago de Biskupin onde encontrara Jakob, ele procurava vestígios arqueológicos. Estudioso dos fósseis fala-lhe da madeira apodrecida que sobrevive petrificada; das transformações da natureza durante séculos para renascer; da força da vida. 

Mas em que momento é que a madeira se transforma em pedra?” E as folhas? E as plantas? E os peixes?

Também Jakob tem de sobreviver e Athos tenta ‘fixá-lo’ a um sítio, a uma paisagem: à Grécia, ocupada agora pelos nazis, à sua ilha de Jakintos. Depois, muito mais tarde, será a cidade de Toronto.
O que é o homem sem uma paisagem? É apenas o momento em que se olha ao espelho…”(pg.81)
Van Gogh, paisagem em Arles
Athos e as suas inesquecíveis lições de vida, de arte, da procura da beleza das coisas naturais e das criadas. E da sua necessidade..Da necessidade da vida!
“Encontra o modo de tornar a beleza necessária e de tornar bela a necessidade.” 
Que se salve através do passado: que tire para fora tudo! “Escreve para te salvares. Um dia escreverás porque te salvaste. (…) E nesse dia talvez tenhas vergonha de teres sobrevivido.”
O que acontecerá a Jakob? Não vou contar. É um livro demasiado belo, ético, profundo e cheio de pequenas riquezas para ser contado assim, sem o ler!
Cada momento são dois momentos”, insiste Jakob. "O momento da História não coincide nunca com o da memória.” 
Grutas de Lascaux
No ano de 1942, enquanto os judeus são mortos em Auschwitz e se “abrem covas para os enterrar”, nas grutas de Lascaux, os arqueólogos cavam, na profundidade, abrem covas, e descobrem nas cavernas as maravilhas das pinturas rupestres: o “veado que nada”; os “cavalos suspensos no ar…” 
Anton Zorai Music, No Campo
Felix Nussbaum, Esqueletos
Enquanto a orquestra fúnebre e trágica toca nos campos de concentração, o arqueólogo -ao descobrir a beleza- ouve uma sinfonia maravilhosa.
Grutas de Lascaux
Vida e morte. Horror e beleza. Cada momento são dois momentos.
O trabalho de memória sim. “Não conseguia afastar o meu olhar angustiado do momento exacto dos que morreram. (…) Quem morreu primeiro? A mãe ou o filho? Estavam calados ou gritavam? Tinham os olhos abertos ou fechados?” (pg.127) 

I Parte do livro fala do trabalho que Jakob vai realizar. Juntar as "Peças Fugitivas"? Tal como o trabalho do arqueólogo, o escavar dentro do passado é também uma procura de "peças" perdidas que não se deixam apanhar facilmente.
Na II Parte, o narrador, Ben, é um admirador da poesia de Jacob Beer -que se transformou num poeta famoso- e a procura do passado do poeta leva-o a encontrar o seu.

Romance poético, livro metafórico que recorre, constantemente, à metáfora. 
A ciência paleobotanica de Athos 'implica' que há uma gradual descoberta física de estratos arqueológicos - sejam eles os estratos temporais de mudanças ou os da degradaçãoTalvez seja essa a explicação daquilo a que chama o "instante gradual".
“Cada momento são dois momentos”. Em cada momento, há sempre dois momentos. 
Anton Zorai Music, sobrevivente de Auschwitz
Pode dizer-se que o romance explora o tema dos traumas, da dor, da perda e da memória, comparando a realidade humana, pessoal, e a científica. 

Se bem que as personagens possam não ser verdadeiras, baseia-se em acontecimentos reais, vividos. Tal como o lago existiu e a cidade submersa foi descoberta, também Jakintos (ou Zante) foi uma ilha ocupada pelos alemães onde os judeus que lá viviam foram expulsos e mortos (2). 
Quem é Anne Michaels? Uma poetiza e romancista canadiana, nascida em 1958 em Toronto, filha de pai polaco. O livro "Fugitive Pieces", publicado em 1996, sai em Londres (e na Itália) em 1997. Recebeu vários prémios entre os quais o conceituado Orange Prize


NOTA (1): 

Existiu e existe Biskupin. Existiu uma cidade submersa dos tempos da Idade do Ferro, chamaram-lhe a Pompeia Polaca ou Herculaneum polaca. Existia uma fortaleza hoje reconstruída, a 70 kms da fronteira alemã. Os polacos teriam pois lutado desde a pré-história. Biskupin passa a aparecer em novelas e contos e pinturas. Quando os Alemães ocuparam os Sudetas em 1939, as escavações passaram a ser feitas exclusivamente (1940) pelos SS Ahnenerbe até 1942. Quando foram obrigados a recuar, os alemães inundaram as escavações esperando destruí-la mas ironicamente isso levou a que se preservassem muito bem as antigas construções. As escavações foram retomadas pela Polónia depois da Guerra por arqueólogos polacos e continuaram até 1974.

NOTA (2):

Anne Michaels conta a história do Bispo Crysostomos a quem os nazis tinham exigido uma lista com os nomes dos judeus da ilha. Ele entrega-lhes um papel com dois nomes apenas: o dele e o do presidente da Câmara. 
E conta como o bispo -toda a noite- ficou ao lado do barco cheio de gente,  prontos para a expulsão, a falar com eles e a rezar. 
O que explica que em 1953, num grande sismo que deitou abaixo grande parte da ilha os primeiros socorros tenham vindo de Israel. Hoje Jakintos resiste a todos os sismos porque construída coma as técnicas anti-sísmicas mais modernas.