sábado, 11 de fevereiro de 2017

José Régio e os poetas sem alma...

Escreve José Régio em “Páginas do Diário Íntimo” (*):

 “Cada vez me convenço mais de que toda a verdadeira arte é humana, e afunda raízes nas entranhas do criador. Só assim provoca profundas ressonâncias no leitor. Quanto mais germinalmente subjectiva (subjectiva na sua génese), mais probabilidades tem a obra de arte de conquistar uma ‘existência independente’, quer dizer: a objectividade que lhe compete. A ingenuidade a despeito de toda a sabedoria do artista (ou do artífice) é outro elemento que me parece característico de toda a obra de criação.”

E acrescenta:
A maior parte dos pretensos poetas de hoje carecem quase totalmente de íntima transcendente ingenuidade. Por isso não são poetas.”

Tem razão o Poeta. No 'Diário' referia-se à poesia dos “experimentalistas e formalistas da moda novíssima”, como lhes chama. Continua actual - quer no que diz respeito a poetas quer a escritores. Para ser autêntico, é essencial “afundar raízes nas entranhas”, pois, só assim, “provoca profundas ressonâncias no leitor”.

Leio hoje escritores –ou apenas folheio os livros- que sinto vazios dentro, falsos e sem ‘alma’. Enquanto outros, em breves e simplicíssimos versos, nos trazem um perfume, um momento, uma saudade, um desgosto que nos atingem fundo! Porque neles existe o afundamento na vida, sentido e contado de modo único, por uma voz única e original.

E vou buscar o livro de Poesias, de Manuel Bandeira (**). Na sua aparente simplicidade quanta emoção, cor, grito de vida, calmo desespero, sentido do efémero, presença da morte e, no entanto, a esperança!
Manuel Bandeira

 “Preparação para a morte”
“Cada pássaro,
com sua plumagem,
É um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte,
- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
(pg. 142)
A ternura que nos enche quando fala do primeiro amor, no poema Porquinho-da-Índia:
“Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prà sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…
- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.”
(pg.169)
E a hesitação no poema ‘Tema e voltas’, entre sofrimento real e ironia ?
“Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?
Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?” 
(pg.112)
E que dizer de “Momento num café”? O efémero, a consciência do absurdo e da ‘sem finalidade da vida’.
"A  vida é uma agitação feroz e sem finalidade". E o corpo que passa é afinal e apenas..."matéria liberta da alma"!
pormenor do Enterro do Conde de Orgaz, El Greco

“Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes da vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.”
(pg.128)
E o poema “Bicho”? Com data de 27 de Setembro de 1947, no Rio, é um poema, infelizmente actual e doloroso...

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Anjo, de Paula Rego

Fecho com o maravilhoso e dolente ‘Trem de ferro’. Quem não 'ouve' e não sente ainda o cheiro e não recorda o velho comboio a carvão da nossa infância a apitar e a deitar fagulhas?
“Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça,
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô…
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingàzeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
….
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…”
(pg.192)
Poesia. Sentida, vinda dos fundos do tempo, vivida por dentro, a "afundar raízes nas entranhas”, pois, só assim, “provoca profundas ressonâncias no leitor

Tinha razão José Régio que também amava Manuel Bandeira!
na Academia Brasileira de Letras

O poeta Manuel Bandeira nasce em  Pernambuco em 19 de Abril de 1886 e morre no Rio de Janeiro em 13 de Outubro de 1968. É professor de Literatura Hispano-Americana,  a partir de 1943, na Faculdade de Filosofia. Em 1940, é eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Pernambuco

 (*)José Régio, Páginas do Diário Íntimo, dia 3 de Dezembro de 1964, Obra Completa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2ª edição, pg.361
(**) Poesias de Manuel Bandeira, Portugália, colecção Poetas de Hoje, 1968

Mais sobre Manuel Bandeira:


5 comentários:

  1. Gostei muito desta aliança entre os poetas lusos e a sua infância.
    Beijinho grato pela partilha. Entendo o que diz. Achei o livro de Ana Zanatti vazio mas porque a sociedade que retrata é vazia.
    Beijinho.:))

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  2. Sempre gostei muito de Manuel Bandeira. Em Portugal temos poetas maravilhosos, de que José Régio é um exemplo. Não estou de acordo com algumas reflexões, mas que mais dá? Se sempre estivesse de acordo contigo é porque algo falhava em mim, é impossível, aborrecido e sospeitoso, dizer sempre "amen" a tudo. Penso...
    Feliz 14 de Fevereiro, este dia já não é para mim, mas tenho outros. Beijinhos

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  3. Os meus amigos cibernautas brasileiros consideram Manuel Bandeira um dos dois melhores exponentes da literatura do seu país, sendo o outro, Drummond de Andrade, seu sucessor.
    Concordo com Régio e consigo... Há poetas que são mais jardineiros da palavra, preocupando-se demasiado com o aspecto formal do que com as mensagens que surgem destituídas de sentires genuínos ou raízes humanistas.
    Achei muito interessante esta dissertação sobre a qualidade da obra destes exímios conhecedores da arte da escrita.
    ~~~ Beijinhos, MJ ~~~

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    1. E têm razão os seus amigos brasileiros, Majo. É um poeta maravilhoso, de grande pureza e simplicidade aparente. Fala de tudo com um tom quase coloquial, mas com uma escrita puríssima! Um beijo

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  4. Querida Maria João,
    O grande José Régio! Acabei de ler "Viajar com... José Régio", de Laura Castro!
    Manuel Bandeira tem poemas lindíssimos e outros tão fortes,como "Bicho".
    Volto constantemente a estes escritores... são incontornáveis e gosto de os ter por perto, para ler, reler ou simplesmente folhear!
    Beijinhos.:))

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