quinta-feira, 1 de junho de 2017

Do Japão, com amor e ternura...

Estou a ler um livro de Soseki, escritor de sensibilidade extraordinária, Petits contes du Printemps (*). Nele encontramos, de forma sintética e essencial, sentimentos e observações várias da natureza, dos animais e das gentes. 


De Sôseki já falei dos seus "haikus" - tão belos. É, para além de poeta, um grande contista. Tudo o que o rodeia lhe interessa, tem descrições em que nos sentimos levar os lugares por onde vai passando, vemos agir as pessoas que descreve e até a passagem breve de um gato e da sua agonia –quase humana- nos deixa ansiosos e perplexos.
Um simples gato que vai definhando sem que ninguém o ‘veja’. Só quando morre, ganha estatuto de ‘ser vivente’. E todos os anos no aniversário da sua morte a dona vai pôr um peixinho no seu pequeno túmulo no quintal. O autor gosta dos gatos pois há um outro livro do (autor que tenho guardado para ler) intitulado "Eu sou um gato".
Os lugares de que fala dividem-se entre o Japão e Londres onde viveu dois anos dos quais se lembrará sempre - dizendo apenas que “sofreu como um cão”. 
Estes 25 contos que escreveu em 1909, considera-os  ele “fragmentos de um diário íntimo” e passam-se, realmente e apenas, entre o dia 1 de Janeiro e o dia 12 de Março desse ano.

Num outro seu livro mais tardio, "A travers la vitre", escreverá: “Vou abordar temas tão ténues que devo ser só eu com certeza a interessar-me por eles.” Temas ténues, leves, de nostalgia, sim. E de ternura, de beleza - em páginas que nunca esqueceremos!

Os contos “L’odeurs du passé”, “La tombe du chat”, “L’incendie”, “Le Professeur Graig” (o especialista de Shakespeare que lhe vai ensinar inglês, em Londres), ou “O primeiro dia do ano” onde encontramos a delicadeza dos costumes do Japão, no encontro do primeiro dia, ou, melhor, noite do Ano Novo em sua casa: os amigos, o modo de se vestirem segundo a solenidade da festa, o Mestre que toca num tamborzinho - têm a humanidade das histórias que têm vida.

Sosêki fala das pequenas coisas da vida das pessoas simples - e que , no entanto, nos comovem tento!  
Temas “ténues”, aparentemente insignificantes, quem se interessará por eles? Não creio. São histórias de sentimentos vivos, de expectativas, de remorsos, de tristeza. São pedaços de vida e da afectividade que as pessoas normais e simples sentem pelas "coisas de todos os dias" que, tantas vezes, nem nos apercebemos delas -na pressa de viver, no esforço da luta de cada dia, na confusão e no cáos!


Sempre a par da contemplação da natureza - impávida e indiferente- na beleza das primeiras neves; na descrição do incêndio assustador e com ele "vemos" o brilho das chamas vermelhas na noite negra; como vemos o olhar do gato desinteressado de viver, quase blasé (“La tombe du chat”) e que, no entanto, "sente" que vai morrer. 

Ou o pergaminho, antiquíssimo e precioso, um ‘kakemono’, que alguém se vê na necessidade de vender e que ‘não vale nada’ se não para ele; ou a Gioconda oriental, o quadro da Mona Lisa que um coleccionador descobre numa loja de antiguidades e cujo sorriso o vai inquietar de tal modo que tem de o ir vender na mesma loja.

As histórias dos seus pequenos contos passam-se no Japão e em Londres onde viveu dois anos. Nele, está sempre presente o que se passa pelo coração das pessoas. Em 1914, dois anos antes de morrer, escreveu "Kokoro" (coração).
A simplicidade dos seus contos, lembra a de outro escritor japonês, Yasunari Kawabata (1889-1972), Prémio Nobel em 1968. Refiro-me aos “Contos da palma da mão”. Igualmente sintéticos – ‘essenciais’- 

edição brasileira

De Kawabata, leio nas badanas da edição italiana (“Racconti in un palmo di mano” este comentário: “trinta e dias rápidos esboços nos quais a  vida quotidiana, a vida do universo, aparecem fracturados, acontecimento depois de acontecimento, emoção após emoção.”

Obras-primas, de fineza psicológica, de saberes acumulados, ao longo do tempo. Por detrás da “fachada opaca dos dias que passam”, o escritor é o observador atento, o espião dessa realidade insuspeitada e escondida.



Kawabata Yasunari, o escritor da ternura e da angústia dolorosa, é o espião dessa realidade insuspeitada e escondida.
Outra maravilha é o romance "Terra de Neve" - editado, em Portugal, pela Dom Quixote. Um livro que leio e releio sempre com o mesmo encanto.

De género diferente, "A casa das belas adormecidas" é outra maravilha da literatura: uma história do amor pela beleza da juventude face à morte.

Kawabata foi o primeiro Prémio Nobel da Literatura Japonesa, em 1968. Em Estocolmo, discursou sobre a inutilidade do suicídio. Vários escritores japoneses da sua geração se tinham suicidado já (2).

Kawabata Yasunari (1899-1972)

Natsume Sôseki (1817-1916)

Dois livros de escritores inesquecíveis cuja leitura aconselho vivamente. Sinto que saí deles mais rica interiormente, senti-me acompanhada, para além do enorme prazer que senti ao lê-los! 

Aconselho vivamente estes dois livros. Deles saímos mais ricos interiormente, creio. Mais próximos do "coração" das coisa.

Por mim digo que me sinto sempre acompanhada, na leitura dos livros de Kawabata e Sosêki, são horas de puro prazer e de aprendizagem.
Boa leitura! As férias vêm aí!


(*) Sôseki, “Petits  contes de Printemps”, Editions Philippe Picquier, Picquier Poche, 2003.
(**) “Racconti in un palmo di mano”, Ed. Letteratura Universale, Marsilio (Venezia, 1993)

NOTA BIOGRÁFICA:

1- Natsume Sosêki (pseudónimo de Natsume Kinnosuke nasceu em 9 de Fevereiro de 1867, na época de “Edo” (hoje Tóquio)e morreu em 9 de Dezembro de 1918. Considerado um dos maiores novelistas japoneses da época Meiji – e “o primeiro a pintar a inclinação da moderna literatura alienada dos intelectuais do Japão.”
Licenciado em Literatura Inglesa na Universidade de Tóquio (1893) e ensina na províncias até 1900, altura em que segue para Inglaterra para ensinar num “leitorado”. Em 1903 torna-se professor de Inglês, na Universidade de Tóquio.
2-  Yasunari Kawabata nasceu em Osaka, em Junho de 1899 e morre, suicida, em Kanawaga, em Abril de 1972.
No seu discurso em Estocolmo, em 1968, o primeiro Prémio Nobel da Literatura Japonesa, condena o suicídio, recordando escritores e amigos que haviam escolhido essa forma de morrer.
Em 1972, porém, deprimido e angustiado, pela morte do jovem escritor e amigo, Youki Mishima, de que fizera “harakiri” em 1970, Kawabata suicida-se em Zushi, perto de Yokohama.




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